Maiores que a culpa / 20 – O humanismo bíblico é uma infinita educação para a liberdade
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 03/06/2018
«Se o teu coração não quiser ceder
Não sentir paixão, não quiser sofrer
Sem fazer planos do que virá depois
O meu coração pode amar pelos dois»
Luisa Sobral, Amar pelos dois
Quando se procura responder a uma vocação, a existência move-se entre a recordação de uma grande libertação e a espera da realização de uma grande promessa, entre memória e esperança. Tudo se desenrola entre estas duas margens do rio e a arte de viver está em aprender a permanecer no vau, sem ceder à tentação da saudade da costa donde proviemos nem àquela que nos repete que o desembarque era apenas uma miragem. Não se é submerso pelas águas e levado pela corrente enquanto se permanecer agarrados à corda invisível que liga o Mar Vermelho ao Jordão. Também porque quando mais nos aproximamos da outra margem, mais o pedaço de corda que agarramos fica cada vez mais fina sob a nossa mão.
David recuperou a arca e transportou-a para Jerusalém, a sua nova cidade. Assim, religou o seu reino à primeira Aliança dos antepassados, na saída do Egipto, no Sinai, e ligou o seu nome ao nome da origem. Mas um grande projeto coletivo não vive apenas a elaborar e a resgatar a memória; tem uma necessidade vital de uma nova promessa que abra o futuro, enquanto o ancora ao passado, porque nenhuma aurora é luminosa se não se antevê a chegada do meio-dia. Mas, enquanto a origem é dom e herança e, por isso, apenas a podemos acolher e receber, procurar hoje a legitimação do futuro expõe sempre ao risco da manipulação do passado para o transformar ideologicamente em depósito de um futuro que queremos construir e não esperar. Também David sente este medo e esta tentação: “Quando o rei se instalou em sua casa … disse David ao profeta Natan: «Não vês que eu moro num palácio de cedro, enquanto a Arca de Deus está abrigada numa tenda?»” (7, 1-2). A Jerusalém de David não tem um templo. Outras cidades de Israel tinham-no. David quer dar ao seu Deus uma casa na sua nova cidade. O profeta Natan, que faz, aqui, a sua aparição, responde: “Pois bem, faz o que te dita o coração, porque o Senhor está contigo!” (7, 3). Natan é profeta de corte, sabia que o Senhor estava com David e, sem interrogar diretamente YHWH, aconselha o rei a fazer quando deseja fazer. Este é um exercício ordinário da profecia, quando o profeta usa o passado e o bom senso para responder a uma pergunta sobre o presente e sobre o futuro. Mas a pergunta de David não era uma pergunta ordinária, porque tocava uma coluna da identidade do seu povo. Portanto, não podia ser suficiente a sua profissão; havia necessidade de uma epifania para compreender uma verdade mais profunda: “Mas, naquela mesma noite, o Senhor falou a Natan, dizendo-lhe: «Vai dizer ao meu servo David: Diz o Senhor: "És tu que me vais construir uma casa para Eu habitar? Desde que tirei da terra do Egipto os filhos de Israel até ao dia de hoje, não habitei em casa alguma; mas peregrinava alojado numa tenda que me servia de morada»” (7, 4-6). Mas… a palavra que YHWH dirige ao seu profeta começa com um ‘mas’. Natan é o profeta próximo de David; talvez, após a morte de Samuel, tenha ocupado o seu lugar de conselheiro profético do rei. A sua função e a sua profissão tinham-lhe sugerido, numa primeira reação, apoiar o desejo do rei. Mas Natan é um profeta verdadeiro; Ser-lhe-á revelado o resto da vida de David. E eis que dispara nele uma segunda dimensão da palavra. É-lhe sugerido – talvez em sonho – uma outra verdade, uma palavra maior e diferente da primeira. Os profetas verdadeiros são diferentes dos profetas falsos porque sabem ser portadores de duas vozes, diferentes, apesar de saírem da mesma boca. Torna-se falso profeta quando as duas vozes acabam por coincidir – o profeta faz-se deus e, frequentemente, consegue convencer os outros (e a si mesmo) de o ser verdadeiramente.
Natan, pelo contrário, distingue as duas vozes, ordena-as hierarquicamente e, no dia seguinte, tem a coragem de dizer a David o contrário de quanto tinha dito no dia anterior. Não é um profeta rufia, não tem medo de fazer má figura, mostrando-se desmentido por YHWH, nem tem medo de dizer a David coisas diferentes das que gostaria de dizer (está aqui quase toda a dificuldade do exercício de toda a profecia verdadeira). O novo oráculo diz a David (e a nós) algo de fundamental para a fé bíblica e para qualquer fé.
YHWH tinha-se revelado como uma voz, voz livre e não aprisionável. Desde o princípio, tinha assegurado a sua presença (schekhinah) no hoje do povo. Como o maná, aquela presença saciava só a fome diária e não podia ser acumulada, caso contrário apodrecia – é este o sentido da esperança bíblica e o valor da gratuidade (charis, gratia) de toda a fé-confiança. Confiamos verdadeiramente em alguém a quem estamos ligados por um pacto enquanto esperamos que, amanhã, volte novamente a casa tendo-lhe dado, hoje, a liberdade de o não fazer, sem nunca nos deixarmos de surpreender sempre que o vemos voltar. Mas, no dia em que construímos um sistema de garantias e controlo que impedem o outro de não voltar, nos regressos não-livres, aquela relação começa a morrer. O humanismo bíblico é uma infinita educação para esta liberdade, que culmina num crucificado que morre sem que quem está junto da cruz tenha garantias da sua ressurreição. Havia apenas uma grande esperança, que continua a fazer-nos ver crucificados a ressuscitar se não deixamos de frequentar os Gólgotas da nossa terra (muitos não conseguem ver as ressurreições porque perderam de vista os lugares onde ocorrem as crucifixões e onde as pedras rolam: nos “bons salões” nunca nenhum jardineiro nos chamará pelo nome).
A construção de um novo templo era a obra mais natural e mais religiosa para David; o bom senso e a sua devoção apontavam para esta única direção. Mas o Deus bíblico não é o deus do bom senso dos reis nem das religiões. A relação entre YHWH e o templo sempre foi ambivalente e problemático, expressão da ambivalência e da problemática da relação entre a Bíblia e a religião. A Bíblia gerou muitas religiões, mas o seu primeiro objetivo não é a edificação de um discurso religioso. No centro do humanismo bíblico está, pelo contrário, a fé; portanto, uma relação, coletiva ou individual, com um Deus espiritual e, por isso, diferente dos outros ídolos. E, enquanto relação, a fé bíblica é dinâmica, histórica, evolutiva, surpreendente, competitiva, contraditória. As religiões têm necessidade de templos; a Bíblia pode passar sem eles, e passou sem eles. À Bíblia interessa realçar a verdade de um Deus maior e diferente de qualquer templo e de qualquer religião. E, então, a geração que passa entre a procura de um templo de David e a sua construção por parte do seu filho Salomão, aquele vazio histórico de Israel é a linguagem com que a Bíblia quis mostrar o excedente entre o templo de Deus e o Deus do templo, a diferença entre a fé e a religião que incarna essa fé, a liberdade de YHWH em relação às casas que lhe construímos para lhe dizer qual deve ser a sua morada e o seu território por nós delimitado. Para recordar a todas as religiões do livro que aquele Deus diferente não é monopolizável, que não se pode tornar propriedade privada de um povo nem de nenhuma comunidade religiosa. Todas as violências religiosas nascem quando se esquece a existência desta ‘geração intermédia’, o tempo sem templo, a diferença entre a procura de uma casa e a resposta. A terra do templo vem, assim, a coincidir com a terra de Deus, o teto do templo torna-se a medida da liberdade de Deus e nossa. Está nesta diferença a belíssima laicidade do Deus bíblico, que prefere o ‘vaguear debaixo duma tenda’ ao cedro robusto e estável do templo. A stabitas loci não é um atributo do Deus da Bíblia – o vaguear de Deus que permite às nossas estabilidades não se tornarem prisões religiosas.
Deus, através de Natan, responde ao pedido de David: “O Senhor faz hoje saber que será Ele próprio quem edificará uma casa para ti” (7, 11). Reviravolta na história. É David, somos nós que temos necessidade de uma casa e de uma bênção. É dada a David uma bênção diferente e especial, uma promessa nova e maravilhosa: “A tua casa e o teu reino permanecerão para sempre diante de mim, e o teu trono estará firme para sempre” (7, 16). Para sempre. Nesta nova promessa não há o ‘se’, que era o centro da primeira Aliança com os Patriarcas e com Moisés, onde a estrutura contratual comprometia uma parte à fidelidade com a condição de a outra parte se manter também fiel. Ora, aqui, temos, pelo contrário, um pacto incondicional por parte de Deus – “Se ele cometer alguma falta, hei de corrigi-lo com varas e com açoites, como fazem os homens, mas não lhe tirarei a minha graça,” (7, 14-15). Não tirarei.
Muitas das grandes promessas da vida são, e devem ser, recíprocas e condicionais. As famílias, as empresas, as comunidades vive, de pactos e de ‘ses’ que dão seriedade e robustez às nossas casas. Mas, se olharmos bem, descobrimos que, por detrás dos ‘ses’ e da condições das nossas alianças, estão promessas sem ses e sem condições. Um casamento é um pacto de reciprocidade que vive se cada um faz a sua parte e é fiel. O pacto nupcial não é, porém, um encontro de ‘ses’ porque se disséssemos ao outro ‘amar-te-ei para sempre se tu me amares para sempre’, sairíamos do pacto nupcial e precipitar-nos-íamos num contrato comercial. O ‘para sempre’, no momento em que é pronunciado, não conhece os ‘ses’. Há uma dimensão de liberdade incondicional como fundamento das nossas reciprocidades condicionais porque, se não existissem, os nossos pactos não seriam suficientemente robustos e livres para poder durar. Os seres humanos são maiores que a sua reciprocidade, somos mais livres que os nossos ‘ses’, sabemos amar mais que as condições que colocamos ao nosso amor. Por isso (por vezes), conseguimos não morrer quando descobrimos que o nosso ‘para sempre’ não encontrou o ‘para sempre’ do outro, os nossos pactos correram mal, não experimentamos ressurgir, mais uma vez. Ou quando continuamos a caminhar, ancorados num ‘para sempre’, mesmo que estejamos convencidos que, da outra parte, já não haja nada a colher da primeira promessa pronunciada na juventude. E, talvez, no fim, descobriremos que a corda se tinha adelgaçado tanto, a ponto de se quebrar, mas existia uma mão a recolher-nos porque, continuando a caminhar, tínhamos chegado a um passo da nova terra e não nos tínhamos apercebido.
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