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O decoro diferente das mulheres

Maiores que a culpa / 19 – As palavras verdadeiras dos rejeitados e rejeitadas salvam também a Deus

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 27/05/2018

Piu grandi della colpa 19 rid«Foi por graça de Deus, e não pelos seus méritos, que Noé encontrou, na arca, um abrigo da fúria avassaladora das águas. Apesar de ser melhor que os seus contemporâneos, não teria merecido que, para ele, se realizassem milagres»

Louis Ginzberg Le leggende degli ebrei

Foi a religião a inventar o homo oeconomicus, muito antes que o reinventasse a economia. O primeiro parceiro de negócios dos homens foi Deus, porque a economia dos mercados foi uma extensão da economia na esfera religiosa. As primeiras moedas que a humanidade conheceu foram cabras, carneiros, cordeiros, às vezes também crianças e virgens, com as quais os homens pagavam aos seus deuses, às vezes para lhes pagar ou, por vezes, para reduzir o débito originário pelo qual as comunidades se sentiam esmagadas.

A Bíblia, nalguns dos seus livros (profetas, Job, Qohélet, muitos textos dos Evangelhos e de Paulo) reagiram com força a esta visão económica da fé, dos sacrifícios e do culto, fazendo tudo para manter Deus fora dos nossos comércios, para o salvar da nossa constante tentação em o manipular. Mas também na Bíblia, no Antigo e Novo Testamento e, depois, na teologia e na praxis cristã, permanecem vestígios, por vezes muito visíveis, desta ideia mercantil da religião, onde até a morte de Cristo foi lida como “pagamento” de um preço ao Pai, e onde o sofrimento – nosso e dos outros – é lido como “moeda” para pagar a um Deus nosso credor.

Um lugar onde a religião económica produziu, de verdade, muitos e graves danos é a valoração social, espiritual e ética dos pobres. Pobres eram os mendicantes, mas pobres eram também os leprosos, os cegos, os mudos, os coxos, todos unidos pelo faco de serem escórias da comunidade. Para defender a sua ideia de Deus justo, as antigas religiões económicas condenavam os pobres, que tornavam rejeitados pela vida e rejeitados por Deus. O “cego e o coxo” eram portadores de culpa e de pecado e, por isso, Deus podia continuar perfeito na sua justiça porque cada um recebia, da vida, exatamente quanto tinha merecido (por si próprio ou pelos seus pais). Riqueza duplamente abençoada; pobreza duplamente amaldiçoada – até há pouco, muitos pais segregavam, em casa ou em institutos, os filhos portadores de graves incapacidades, porque sentiam muito forte, sobre a sua família, a maldição religiosa e social por aqueles filhos diferentes. Após milénios, as civilizações humanas (nem todas ainda) estão a conseguir, finalmente, dizer que a incapacidade não é uma maldição, que a indigência material e psicofísica não um estigma, mas uma pergunta, de cuja resposta dependem a qualidade civil e moral de uma sociedade e a sua justiça mais importante. Uma conquista entre as maiores da humanidade, sempre frágil, porque a antiga ideia de pobreza-maldição mudou de formas (desemprego, falta de rendimentos, imigração…), disfarça-se e camufla-se (meritocracia), mas é cada vez mais forte a sua capacidade de convencer que a pobreza dos outros não tenha qualquer relação com a nossa riqueza “merecida” – culpabilizar as vítimas é a mais antiga e simples estratégia para negar qualquer responsabilidade nossa.

«Vieram, pois, todos os anciãos de Israel ter com o rei a Hebron. David fez com eles uma aliança diante do Senhor, e eles sagraram-no rei de Israel» (2 Samuel 5, 3). Depois da consagração de Samuel e os sete anos e meio de reino sobre Judá, David, agora, estabelece um pacto com todas as tribos e torna-se rei de Israel. Quando menino, fora escolhido e ungido, mas só agora, graças a um pacto, se torna verdadeiramente rei. As vocações nascem de um encontro pessoalíssimo com uma voz que chama pelo nome, num espaço de diálogo interior do coração onde, no princípio, não pode nem deve entrar ninguém. Ali começam e vivem as vocações, nos primeiros tempos, mas florescem plenamente se, um dia, aquele diálogo a dois gera um pato, uma experiência de reciprocidade, um compromisso público, assumido com outros homens e mulheres; se e quando aquele primeiro diálogo íntimo se torna discurso social, projeto comum, ação social, e a primeira voz nos diz para construir, com outros, uma arca, para salvar alguém. As vocações devem tornar-se pactos. Muitos chamamentos autênticos se bloqueiam e se arruínam porque ficam demasiado tempo no “primeiro diálogo”, sem conseguir tornar-se um pacto, uma aliança, um compromisso comunitário. Extinguem-se facilmente porque o pacto nasce necessariamente da morte do primeiro diálogo íntimo, e o medo da morte impede o diálogo de ressurgir em pacto. Os pactos são encontros de promessas de um futuro comum livre, não blindado pelo presente. São cada vez mais raros sobre a nossa terra, abarrotada de contratos que devoram os pactos e as alianças, porque, enganando-nos, se apresentam como “mercadorias” parecidas, oferecidas a um preço muito mais baixo que o dos pactos – dumping relacional. Juntamente ao novo reino, aparece, na história de David e Israel, um outro nome maravilhoso que, só por si, diz muitas coisas, belíssimas e tremendas, ontem e hoje: Jerusalém, que, agora, se torna a cidade de David: «O rei marchou com os seus homens para Jerusalém, contra os jebuseus, que habitavam aquela terra. Estes disseram a David: “Não entrarás aqui; serás repelido até por cegos e coxos”.
(…) David apoderou-se da fortaleza de Sião, que é a Cidade de David. David disse naquele dia: “Quem quiser atacar os jebuseus suba pelo canal e mate esses cegos e coxos, que David despreza. Daí, o ditado: ‘Nem cego nem coxo entrarão no templo’”» (5, 6-8). Um texto muito breve para conseguir explicar e fazer compreender a natureza deste ódio entre David e “os cegos e os coxos”. Quer o interpretemos como um gesto de soberba dos Jebuseus que (talvez) puseram deficientes a defender a cidade, quer o leiamos como um ato político de David que (talvez) eliminou do seu exército cegos e coxos, permanece forte e clara a mensagem de fundo: os “cegos e coxos” são os rejeitados, os refugos, os excluídos “da casa” e do templo, os não amados: «O Senhor disse a Moisés: “Nas gerações futuras, nenhum dos teus descendentes, se sofrer de alguma deficiência, poderá oferecer o pão do seu Deus… um cego ou coxo, um desfigurado ou deformado; um aleijado dos pés ou das mãos; um corcunda ou um anão, aquele que tiver uma névoa no olho ou a sarna, uma impigem ou testículos lesionados. (…) Atingido por alguma deficiência, não pode apresentar-se para oferecer o pão do seu Deus» (Levítico, 21, 16-21). Palavras duras e tremendas, que encontramos na Bíblia, juntamente a Isaías, que profetiza: «Aos eunucos (…) dar-lhes-ei, no meu templo e dentro das minhas muralhas, um monumento e um nome mais valioso que os filhos e as filhas» (Isaías 56, 4-5), juntamente às bem-aventuranças e Jesus que cura cegos e paralíticos. A Bíblia oferece-nos razões para condenar os pobres ou para os chamar bem-aventurados – e espera.

Uma das primeiras tarefas de David como rei é o transporte da Arca da Aliança para Jerusalém: «Colocaram a Arca de Deus num carro novo, tirando-a da casa de Abinadab, situada na colina. Uzá e Aío, filhos de Abinadab, conduziam o carro novo» (6, 3). Durante o transporte, Uzá toca na arca e morre subitamente (6,7) – outro episódio que mostra o tremendum do sagrado. A procissão, entre cânticos e danças, chega, finalmente, a Jerusalém. E, aqui, encontramos um episódio, narrativamente, muito belo e misterioso.

David, no entusiasmo daquela entrada com a arca, talvez também pela sua índole poética e artística, entra numa espécie de êxtase místico na dança e na música, até quase se desnudar no meio do povo. Mical, sua mulher, vê a cena da sua janela, «e sentiu desprezo por ele em seu coração» (6, 16). Depois, na intimidade da casa, fala com o seu marido: «Que bela figura fez hoje o rei de Israel, dando-se em espetáculo às servas de seus vassalos, e descobrindo-se sem pudor, como qualquer homem do povo!» (6, 20). David não aceita a repreensão conjugal e responde repreendendo-a, por seu lado: «Foi diante do Senhor que dancei, do Senhor que me escolheu e me preferiu a teu pai e a toda a tua família. (…) E bailarei ainda mais, e me aviltarei aos meus próprios olhos» (6, 21-22). A interpretação oficial deste episódio e o redator final do texto estão, claramente, do lado de David, e leem o seu comportamento como uma expressão de humildade e da sua devoção verdadeira a YHWH.

Mas, também aqui, podemos ler de modo diferente este trecho e fazer a nossa escolha narrativa e ética. A vida das famílias, as comuns e as de homens famosos e poderosos, estão cheias de muitos diálogos semelhantes a este, entre David e Mical. São muitas as mulheres que “observam da janela” os comportamentos decorosos e indecorosos dos maridos, mulheres que, em público, calam mas que, depois, sabem falar dentro de casa com uma autoridade diferente e essencial. Certas verdades dizem-se e ouvem-se só dentro de casa, só quando se tem uma família e alguém que nos vê de modo diferente e nos ama tanto a ponto de nos dizer coisas que não podem dizer-nos os nossos “súbditos”, os nossos trabalhadores, eleitores, fans. E são verdades fundamentais para poder viver bem. O decoro das mulheres não é o dos homens, os seus olhos vêm coisas diferentes que, se escutadas, contêm a salvação dos maridos. Mical apenas tinha visto algo que, do seu local de observação, não era nem belo nem bom, nem religioso nem devoto. Mas, nem o marido nem o redator do livro de Samuel que recolheu esta antiga tradição a compreenderam e condenaram-na, sem piedade: «Mical, filha de Saul, não teve mais filhos em todo o tempo que ainda viveu» (6, 22). Mical termina, assim, na grande comunidade dos rejeitados por deus e pelos homens, juntando-se ao seu pai Saul e aos seus irmãos.

Nós podemos deixá-la aí, como fez a grande parte dos comentadores deste trecho, abandonando-a nas periferias existenciais da Bíblia, na companhia dos cegos e dos coxos de David. Porém, também podemos decidir resgatá-la e, com ela, resgatar as muitas mulheres condenadas e rejeitadas pela história e pela vida, só porque disseram aos maridos e aos poderosos palavras diferentes, não rufias e mais verdadeiras que, depois, se tornaram a sua condenação e, não raramente, o seu martírio.

Não basta a Bíblia, nem sequer o Evangelho, para resgatar as vítimas e os pobres. Diz-no-lo a história. É uma necessidade essencial da nossa liberdade. Quem falha muitas vezes nas histórias da Bíblia somos nós, os seus leitores. Para poder chegar até ao quarto de Mical e dizer-lhe: “Compreendo-te”, temos de o querer e escolher. Caso contrário, paramos à porta do quarto e da Bíblia. A leitura bíblica é fecunda se se torna um exercício espiritual e moral para ver e erguer humildes e humilhados e também para salvar Deus, muitas vezes colocado à porta dos fortes e dos vencedores.

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