Este é o lugar de Deus

À escuta da vida / 19 – É no mundo que se manifesta e aqui o encontramos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 30/10/2016

Albero statua crop rid“Talvez um vestígio do rosto crucificado se esconda em cada espelho: talvez o rosto morreu, se apagou, para que Deus seja todos. Quem sabe se esta noite não o veremos nos labirintos do sonho e amanhã não o saberemos”

J. L. Borges, "L’artefice" [O artesão]

O valor da vida dos profetas não está na nossa capacidade de a imitar. São os falsos profetas que se apresentam como modelos a imitar; mas os profetas verdadeiros sabem que, se se mostram a si mesmos como a realização ética das palavras que anunciam, acabam por se tornar ídolos e, assim, obscurecer, como num eclipse, o seu ideal. Os profetas são preciosos se e enquanto inimitáveis e diferentes de nós. Isaías não salvou o seu povo através da imitação dos seus discípulos que, se se tivessem limitado a isso, teriam apenas redimensionado a sua mensagem a traído a sua memória. Os sinais e os gestos proféticos são poderosíssimos quando realizados pelos profetas, mas tornam-se paródias ou comédias quando os fazemos nós, para os imitar.

Não se anda nu durante três anos para copiar Isaías; não se percorre a cidade com um jugo aos ombros para repetir Jeremias, nem se deixa crucificar para imitar Jesus Cristo, nem se ressuscita. Estes gestos fazem-se por vocação, não por imitação; quando nos ouvimos chamar pelo nome e conseguimos compreender que não podemos fazer outra coisa se queremos esperar salvar algo de belo e de verdadeiro dentro da alma. E enquanto estamos naquela nudez, sob aquele jugo, naquela cruz, só e apenas nossas, e, por isso, únicas, irrepetíveis, inimitáveis, os gestos e as palavras dos profetas vão-nos alimentando, tornam-se companheiros de viagem, tornam os nossos jugos mais leves, as nossas mortes mais suaves.

Chegámos ao fim do ciclo de Ezequias, que fecha os capítulos do primeiro Isaías. Acabámos de ver aquele rei justo sair vencedor da provação representada pela salvação idólatra do rei Assírio, graças ao papel essencial desempenhado por Isaías. Agora, o livro mostra-o a braços com uma outra diferente e grande provação, ainda com o profeta a seu lado: “Por este tempo, o rei Ezequias adoeceu de uma enfermidade mortal. O profeta Isaías, filho de Amós, veio visitá-lo e disse-lhe: «Eis o que diz o Senhor: Faz o testamento, porque vais morrer muito brevemente.» Ezequias voltou o rosto para a parede e fez ao Senhor esta oração: «Senhor, lembra-te que tenho andado fielmente diante de ti, com um coração sincero e íntegro, pois fiz sempre a tua vontade.» E começou a chorar, derramando lágrimas abundantes” (Isaías 38, 1-3).

É Isaías a anunciar a Ezequias que a sua doença é mortal. Nem todos temos um profeta a dizer-nos que chegou a última etapa na nossa vida, nem algum vizinho que nos ama e, por isso, nos diz que estamos a chegar ao fim da corrida. Ninguém quererá anunciar aos amigos que o seu último dia está próximo. Queremos dizer-lhe outras palavras (‘coragem, verás que vais recuperar’, ‘conseguiremos’,…), dar esperança não vã, vislumbrar uma ressurreição. Por vezes, porém, não podemos dizer estas palavras se queremos ser sinceros. Então, preferimos calar, conter o nó na garganta, abraçar, acariciar e, sobretudo, estar. De vez em quando, porém, há um amigo, uma mulher, um irmão, que sente que o maior amor é dizer-nos que chegou a nossa hora. E, assim, revive Isaías, revive Ezequias, mesmo sem o saber, mesmo sem o sabermos – o mundo está cheio de trechos bíblicos e incarnados por pessoas que nunca leram nem escutaram uma linha da bíblia, trechos que não são menos verdadeiros que os que recitamos em cada manhã; se assim não fosse, a bíblia seria apenas um livro sagrado para o culto e também não seria uma história viva que continua a vivificar, graças ao amor e à dor de tantos analfabetos de religião, mas capazes de escrever trechos maravilhosos do verdadeiro livro da vida.

Atravessamos a terra, sabendo que este espetáculo magnífico que nos encanta com a sua beleza não é para sempre, que um dia teremos de deixar as montanhas, as flores, os amigos, o mar. Sabemos que este ‘para sempre’ não nos pertence. Há também esta veia de saudade dentro da felicidade que nos dá a visão de uma paisagem de montanha, um bosque no outono, um filho. Mas a vida é maior e, quando se desenvolve bem e floresce, o excesso de beleza da criação cobre aquela sombra subtil que, embora floresça nos dias de tristeza, não consegue tornar-se o tema dominante da nossa existência. Enquanto não chega ‘aquele dia’, e tudo muda. O que era o cenário maravilhoso do nosso caminho revela-se-nos, inesperadamente, o que realmente era: apenas dom, um grande, imenso, superabundante dom. Dom, as pessoas; dom, os amigos; dom, a nossa família; dom, as famílias e as crianças dos outros. Para a Bíblia, também a presença de Deus no mundo é dom: “Não mais verei o Senhor na terra dos vivos. Não mais verei os homens entre os habitantes do mundo” (38, 11). É sempre estupendo e extasiante encontrar estas palavras na Bíblia. Para o homem bíblico, o lugar da experiência religiosa não é o paraíso; é a terra, o único lugar que nos é dado para as teofanias, para falar com os anjos, para sentir o toque de Deus. E é maravilhosa esta notícia. É na terra que Abraão ouviu a voz de Elohim; é na terra que YHWH falou a Moisés; a Promessa é promessa de uma terra e não dum céu. É na terra que os profetas viram o Senhor; foi um mar desta terra que, um dia, se abriu para libertar um povo escravo. Foi a terra do Gólgota a recolher o sangue do crucificado; a terra do sepulcro recebe o seu corpo. A terra da Galileia vê-o ressuscitado e é a qualidade de vida na nossa terra que dá sentido àquela ressurreição – Paulo diz-nos que a nossa fé é vã sem a ressurreição de Cristo, mas também a ressurreição é vã sem a nossa fé, a qual só é possível sobre esta terra.

Se a fé bíblica ainda é verdadeira hoje, então Elohim deve continuar a ser escutado, visto, encontrado sobre esta terra. Para a fé num deus ou deuses imortais, que habitam em qualquer parte, nos céus, não havia a necessidade da revelação bíblica; já estava presente no imaginário religioso dos povos. É fácil ser ateu, negando um deus celeste e longínquo; é muito mais difícil ser ateu do Deus bíblico, porque é preciso enfrentá-lo, combate-lo e vencê-lo sobre esta terra, na sua travessia noturna. Então, a única esperança que temos de poder fechar os olhos ‘naquele dia’ e reabri-los de modo diferente, mas verdadeiramente, lá, é ter vislumbrado aqui o divino com os nossos olhos – pelo menos tê-lo desejado, ou sonhado, mesmo que só uma vez.

A morte não podia ser vista por Ezequias e pelos seus contemporâneos como a ‘porta do paraíso’ dos justos, mas como o fim do dom da vida e início de algo de escuro e temeroso: “vou ter de descer às portas do Abismo, privado do resto dos meus anos” (38, 10). O relato diz-nos que Ezequias chorou copiosamente. Diferentemente dos patriarcas de Israel, não foi ‘saciado de dias’: “A meio dos meus dias vou ter de descer às portas do Abismo” (38, 10). A morte prematura revestia-se, portanto, também de um significado divino punitivo, ligado a alguma culpa (típico da religião retributiva, muito radicada no mundo antigo, incluindo Israel). O rei é justo, não aceita a morte com resignação e reza: “Senhor, lembra-te que tenho andado fielmente diante de ti”. Nunca estamos prontos para morrer, porque é um ato único do qual não podemos fazer uma experiência direta. Aprendemos a morrer vivendo a morte dos outros que nos são arrancados e, assim, falta-nos a amizade com a nossa morte. Porém, quando a morte chega no pleno dos anos é, verdadeiramente, o grande ‘inimigo’ que irrompe na noite para roubar, cortar: «Como tecelão, eu tecia a minha vida, mas cortaram-me a trama» (38, 12). Então, Ezequias chora e grita: «Pio como a andorinha, gemo como a pomba» (38, 13-14).

Este pranto do rei justo torna-se uma oração poderosa e miraculosa. YHWH escuta-a; intervém e convida Isaías a levar, desta vez, o alegre anúncio de salvação; «Ouvi a tua oração e vi as tuas lágrimas; vou acrescentar à tua vida mais quinze anos. Hei-de livrar-te, a ti e a esta cidade, das mãos do rei da Assíria e protegê-la-ei» (38, 5-6). O pranto de Ezequias ‘comove’ Deus. Como o de Agar quando, escorraçada por Sara, chora no deserto, e lhe vem ao encontro o primeiro anjo, para a consolar e salvar.

Isaías anuncia ao rei a salvação da cidade, a sua cura e o dom de muitos outros anos de vida. É a ressurreição de Ezequias. Quando começa o tempo das nossas doenças mortais, quando mergulhamos nas angústias e explodem os nossos prantos abundantes, nós não vemos chegar os profetas a trazer-nos o alegre anúncio de uma ressurreição. Mas pode acontecer, de vez em quando, sair vencedores da luta contra um tumor que parecia mortal e, assim, encontramo-nos vivos depois de ter visto a morte chegar ao horizonte. E, por vezes, recitamos o salmo de louvor de Ezequias. Outras vezes, as mais numerosas, choramos muito, piamos como as andorinhas e as pombas, rezamos até ao fim por nós e por quem amamos, mas a vida não volta. Também quando os anos não nos são devolvidos, podemos entoar o cântico dos salmos, podemos chamar os profetas e o seu Deus à nossa cabeceira porque, se o encontrámos, ao menos uma vez, podemos reencontrá-lo ainda. E se nunca o encontrámos nem desejámos Deus e os profetas, ou se o conhecemos e desejámos desde jovens, e depois o quisemos esquecer, esperando assim tornar-nos adultos, podemos sempre reaprender uma última oração, ou fazê-la recitar por um amigo bom. E, depois, esperar, confiantes, o abraço do anjo.

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