À escuta da vida / 18 – O consumismo impõe templos cheios de mercadorias e vazios de vida
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 23/10/2016
“Sem a fé, os nossos filhos nunca serão ricos; com a fé, nunca serão pobres”.
Beato Giuseppe Tovini, banqueiro
A fé bíblica é libertação. A aliança com YHWH foi, sobretudo, o grande caminho para fugir da escravidão dos impérios. Está aqui muito da capacidade inovadora e revolucionária da Bíblia: aceitar aliar-se com um Deus altíssimo, invisível, impronunciável, totalmente espiritual, foi o caminho para não se tornar súbditos de reis e faraós muito visíveis, materiais, pronunciáveis e pronunciados. Escravos de soberanos, com nomes ditos e repetidos em cada ângulo do reino, cuja imagem era reproduzida em muitas estátuas que desenhavam a paisagem do seu reino.
Reconhecer que só YHWH é senhor foi uma pedagogia extraordinária para aprender a verdadeira laicidade da política e da vida civil e, portanto, reconhecer a natureza idólatra dos impérios, das comunidades, das famílias (onde, para não transformar os nossos filhos em ídolos estúpidos, devemos renunciar a pensá-los, vê-los e ‘criá-los’ à nossa imagem e semelhança). O Deus bíblico é diferente de César, porque César não é Deus nem se pode tornar nisso. Quando muito, poderá conquistar o status de ídolo. Os ídolos são muito menos que Deus, são muito menos que o homem. A idolatria é sempre um encolhimento de Deus, mas é também um encolhimento do homem. A profecia, protegendo YHWH da idolatria, protegeu-nos de nos tornarmos imagem de fetiche. Eis porque ela é, sobretudo, uma mensagem antropológica dirigida à mulher e ao homem de todos os tempos: ‘não te encolhas, não te tornes cópia de coisas muito mesquinhas; tu vales muito mais’.
Não deve surpreender, então, que o livro de Isaías, começado pela crítica radical aos ídolos, termine o ciclo do chamado ‘primeiro’ Isaías também com a idolatria. O rei Ezequias foi justo e, portanto, anti idolatra: “Destruiu os lugares altos, quebrou as estelas e cortou os símbolos de Achera. Despedaçou a serpente de bronze… Ezequias pôs a sua esperança em YWHW” (2º livro dos Reis, 18, 4-5). Este rei justo está agora para enfrentar a sua maior crise. A superpotência assíria, depois de ter ocupado os vários reinos da região, está prestes a conquistar também Jerusalém. O rei Senaquerib envia uma delegação para lhe pedir a rendição. Os grandes oficiais assírios falam e tocam o coração da fé de Israel: “Não vos iluda Ezequias, dizendo: ‘O Senhor nos livrará’. Porventura, os deuses das outras nações livraram os seus países da mão do rei da Assíria?” (Isaías 36, 18). A mensagem dos embaixadores assírios é muito clara: o vosso Desu é como o dos povos que já conquistámos. É impotente como eles. A vossa fé-confiança é vã, é só ilusão, estupidez, disparates. Por isso, assim se dirigem aos funcionários de Ezequias: “Dizei a Ezequias: "Assim fala o grande rei, o rei da Assíria: donde te vem essa tua confiança?” (36, 4).
Os assírios falam a mesma linguagem religiosa de Israel. Querem uma rendição voluntária, interior, livre. Os impérios sabem que nunca conquistam um povo enquanto não lhe conquistarem a alma, enquanto não o convencerem que a sua fé é uma estupidez, para lhe oferecer a sua, mais inteligente. O copeiro-mor do rei assírio também mostra conhecer o nome do Deus de Israel, YHWH, e diz falar em seu nome (26, 10). Como os falsos profetas. E, como todos os falsos profetas, mostra-se imediatamente idólatra, equiparando YHWH aos ídolos. Foi sempre esta a maior blasfémia na Bíblia, ainda pior que aquela que pronuncia quem nega a existência de Deus: quem pensa ‘Deus não existe’ é simplesmente ‘estulto’ (Salmo 14), mas quem o confunde com os ídolos é idólatra. Por esta razão teológica profunda, Ezequias não aceita o ‘negócio torpe’ que os assírios lhe oferecem, e desmascara-lhes a religiosidade fingida. Por isso, Ezequias, ouvindo o relato dos seus mensageiros, rasga as vestes, veste-se com roupas grosseiras e dirige-se ao templo. E reza: “Presta atenção, Senhor, e escuta! Abre os olhos e vê! (…) É verdade, Senhor! Os reis da Assíria destruíram todas as nações. Queimaram todos os seus deuses, porque não são Deus, mas apenas estátuas de madeira e de pedra feitas pelos homens” (37, 17-19). Esta sua oração é esplêndida, grandiosa, perfeita. Renova a sua fé diferente e convida YHWH a escutar, a abrir os seus olhos, a ver. A ‘despertar’. A primeira oração, em tempo de provação, é um grito para despertar Deus. Para poder continuar a ter fé em Deus, quando este não intervém, é preciso acreditar que esteja a ‘dormir’, porque, se não faz nada e não está a dormir, ou não é Deus ou está morto. O ‘sono de Deus’ foi, muitas vezes, a salvação da fé de quem experimenta a injustiça no seu silêncio. Então, a Bíblia está a dizer-nos que Deus precisa do nosso grito para se mostrar Deus. Para que a impotência se torne omnipotência há necessidade da nossa oração-grito. Somente se Deus não for ídolo poderá acordar, ouvir, olhar, ver, porque os ídolos são mudos, surdos, cegos; não dormem porque desde sempre estão mortos.
Depois, Ezequias manda emissários a Isaías para ouvir a sua palavra. O rei reconhece que o seu ministério real é insuficiente, naquele momento decisivo para o seu povo, quando “os filhos estão prestes a nascer, mas a mãe não tem força para os dar à luz” (37, 3) – são sempre esplêndidas as imagens femininas usadas no livro de Isaías. Sabe, porque é um rei justo, que está em jogo a identidade profunda do povo (a sua fé em YHWH) e, por isso, tem de recorrer ao profeta, que é recurso essencial quando está ameaçada a alma coletiva. Nos tempos normais, a sabedoria do bom governo pode ser suficiente para construir fortificações, purificar os campos, guiar bem a economia e os negócios. Mas quando está em perigo a identidade do povo, a política tem de saber dar lugar à profecia, porque são outros os recursos e as ‘competências’ necessárias. Muitas crises grandes não se superam porque os políticos não têm a humildade de pedir ajuda aos profetas: porque não os procuram, não os conhecem, não os encontram ou porque, simplesmente, já não existem. Estão mortos, estão no exílio, fugiram para terras onde não matam os profetas. Desta vez, porém, a profecia não estava morta nem fugida de Jerusalém. Havia Isaías, e Ezequias sabia, conhecia-o. Era um rei justo. Por isso, manda-o procurar, escuta a sua palavra e salva o seu povo. Isaías repete as mesmas palavras que tinha dito muito antes a Acaz, um rei injusto e idólatra: “Não temer”, não tenhais medo. Esta é, sempre, a primeira palavra dos profetas não-falsos. Os falsos profetas, pelo contrário, aumentam os medos com o objetivo de oferecer falsas soluções. Os profetas guardam os medos para si mesmos e, ao povo, dão paz, porque sabem que nos tempos da provação, é preciso, primeiramente, construir a paz dentro das almas que, tomadas pelo medo, não conseguem escutar as palavras de verdade. E, depois, acrescenta: “Eis o que diz o Senhor a respeito do rei da Assíria: «Ele não entrará nesta cidade, não lançará setas contra ela, nem virá para ela empunhando o seu escudo, nem a rodeará de trincheiras. Regressará pelo caminho por onde veio, mas não entrará nesta cidade»” (37, 33-34).
E assim aconteceu. Jerusalém não foi conquistada; o povo não foi deportado. Já não podemos reconstruir e descrever a sequência e o encadeamento histórico dos factos que levaram os assírios a renunciar à tomada de Jerusalém. O livro de Isaías e o segundo livro dos Reis (caps. 18-19) oferecem-nos versões diferentes. O que interessa ao redator final do livro de Isaías é associar a salvação de Jerusalém e da nação à fé de Ezequias, à palavra de Isaías e, portanto, a YHWH. Interessava-lhe descrever-nos, com os dados históricos à sua disposição, longínquos e parcelares, uma passagem crucial da história de Israel, em que o povo, frente a uma grande crise, não tinha perdido a fé e se tinha salvado – um relato escrito e amadurecido durante o exílio babilónico, quando o povo experimentava o fracasso de fé que um dia os tinha salvado.
Em Isaías e nos profetas, a fé está sempre e indissoluvelmente ligada à confiança e à salvação. Fé é chegar à confiança que aquele Elohim que tinha falado aos seus patriarcas, que, depois, tinha revelado o seu nome (YHWH) a Moisés, não é um ídolo mas está vivo e, por isso, operante no mundo e na sua história concreta, para os salvar. Na Bíblia, a salvação é penhor da fé. A falhada conquista de Jerusalém por parte dos Assírios é importante, sobretudo, como sinal que YHWH está a agir, e que não se está a confiar num deus-feitiço. Salvamo-nos enquanto acreditamos, acreditamos enquanto somos capazes de confiarmos e nos fiarmos e, portanto, ler a nossa salvação como verdade da nossa fé. Enquanto pudermos contar que ‘um dia’ fomos salvos por não ter acreditado nos ídolos, podemos sempre esperar que ‘virá um dia’ em que um não-ídolo nos libertará.
A idolatria, hoje, é galopante, porque se apresenta como laicidade, como espírito pós-religioso e, finalmente, adulto, e, assim, não nos damos conta que o ‘fetichismo do negócio’ se tornou a nova religião de massa do nosso tempo. Um culto com milhões, biliões de totens porque, com o desaparecimento das comunidades e com o pós-capitalismo, os ídolos foram personalizados, desenhados e produzidos ao gosto do consumador individual, sumo e único sacerdote de um ‘templo’ esvaziado de pessoas e cheio de objetos. Toda a cultura idólatra é cultura só do consumo e toda a cultura só do consumo é, implicitamente, idólatra. O ídolo é o consumador perfeito e soberano, nunca saciado de mercadorias. Numa sociedade assim, no trabalho e na produção, não há alegria nem senso: trabalha-se só e sempre como escravos, para produzir tijolos para erguer esfinges e as pirâmides do faraó-deus. Todos somos escultores e forjadores de ídolos, dentro e fora das religiões. Enquanto na terra houver um ídolo, teremos ainda necessidade de profetas.
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