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A fé que «converte» Deus

O exílio e a promessa / 5 – A missão do profeta é também a “segunda oração”

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 09/12/2018

Ezechiele 05 rid«A calúnia mata três pessoas: a que a difunde, a que a escuta e aquela de quem se fala; mas mais a quem a escuta que a quem a difunde»

Mosé Maimonide, Norme di vita morale

As religiões e as fés são também lugares de satisfação das necessidades humanas, porque nenhuma religião descuidou a dimensão material e corpórea da vida. Peixes, pão, maná, codornizes, água, bolos, passas de uva: a Bíblia poderia também ser lida como uma história de alimento, de convivência, de bens. A terra prometida é uma terra onde corre leite e mel. Mas também por esta sua dimensão concreta e total, as fés têm uma tendência intrínseca de se encolher e se reduzir a um mercado onde todo o bem desejado encontra a sua oferta pagando o respetivo preço, transformando-se, assim, em idolatrias ou magias. A oração autêntica só pode viver e crescer dentro de um encontro da gratuidade. A providência não se compra; chega como excedente sobre o nosso pequeno registo contratual. O Deus bíblico é o Deus do Pacto, onde o verdadeiro bem oferecido é uma proximidade, uma presença. Como nas comunidades, que satisfazem as necessidades essenciais (a segurança afetiva, o calor, também necessidades concretas e económicas) se cada um souber alcançar uma interioridade mais profunda que as necessidades, onde se gera a parte mais íntima e bela da comunidade. Os profetas são guardas zelosos desta beleza maior, que sabe conviver com uma indigência que alimenta o sonho e a necessidade de Deus.

Ezequiel é transportado, em visão mística, ao templo de Jerusalém: «Um espírito agarrou-me pelos cabelos. Em seguida, nesta visão divina, o espírito arrebatou-me entre o céu e a terra e conduziu-me a Jerusalém, até à entrada da porta interior…, onde era o lugar do ídolo rival, que provoca ciúmes» (Ezequiel 8, 3). A Bíblia conhece estas visões e também nós as conhecemos por ter provado, por vezes, alguns pedaços – como quando, em exílio, em certas noites luminosas, voltamos à casa que tínhamos deixado, e vemos os pais, os irmãos, ela; ou quando acordamos de sonhos diferentes e sentimos que, quanto vimos, não era tudo um sopro e vanitas. As visões de Ezequiel são também algo de diferente, mas se fossem demasiado diferentes das nossas pequenas “visões”, não seriam feitos humanos e deveríamos colocar os profetas entre os querubins, privando-nos da sua amizade e fraternidade. Podemos compreender as experiências dos profetas, mesmo as mais extraordinárias, porque, embora sendo diferentes de nós, permanecem homens como nós.

A primeira visão de Ezequiel é uma divindade feminina, talvez a deusa da fertilidade, Aserá, uma divindade cananeia que, durante séculos, exerceu um grande fascínio também sobre Israel. Encontramos a divindade feminina em muitos cultos antigos, porque sempre foi grande a necessidade de reconhecer uma natureza sobrenatural às fontes da vida, à fertilidade e à maternidade. Talvez (como parecem sugerir também algumas gravuras encontradas em escavações junto de Horvat Teiman, a este do Sinai), nalgumas épocas, Aserá tenha sido venerada como “mulher de YHWH”. Nada mais natural que imaginar o seu Deus casado e, assim, senti-lo mais próximo da vida normal de todos. A afirmação da fé em YHWH, o Deus diferente e único, foi um processo lento, começado nos cultos naturais e politeístas. Também Israel reclamou deuses e deusas da fertilidade (bezerro de ouro) e da maternidade. Em épocas de crises, porém, a tentação de venerar deuses como os dos outros povos tornava-se particularmente forte e, assim, mais forte crescia a reação dos profetas. Durante a ocupação babilónica, o fascínio do sincretismo religioso foi particularmente poderoso, porque a derrota militar foi lida como derrota religiosa; e a profecia teve de lutar muito para que YHWH, tornado um Deus derrotado, não fosse substituído pelos deuses vencedores que, entre outras coisas, eram muito mais compreensíveis pelo povo. É impressionante e comovente esta batalha típica dos profetas que, embora sentindo a presença de Deus viva na natureza, impediram-na de se identificar com a terra e com a carne, conservando aquela transcendência que nos permitiu, um dia, intuir a absoluta novidade do mistério de Belém – a incarnação do Verbo de Deus não podia ser descrita pelos adoradores dos deuses da natureza, demasiado semelhantes à nossa carne para poder gerar uma palavra-carne diferente e capaz de nos salvar.

A visão do templo continua. O espírito leva Ezequiel a uma outra divisão, onde setenta anciãos estão a adorar deuses egípcios, dizendo: «IHWH não nos vê, o Senhor abandonou o país» (8, 12). Depois, vê as mulheres que choram o deus “Tamuz”, uma divindade babilónica do ciclo das estações, que era chorado no verão, quando “morria” e saudado na primavera quando “ressuscitava”. Uma divindade muito querida e popular que, com a ocupação babilónica, começou a fazer parte do templo de Jerusalém. Por fim, chega à parte mais íntima e sagrada do templo, em que vê vinte homens reunidos para o culto ao deus Sol, o poderoso deus babilónico. Os celebrantes olham para o Oriente, donde surgia aquele deus e, consequentemente, voltam as costas para a Arca de YHWH – um gesto do corpo que, só por si, mostra a traição da Aliança, à qual já só dirigem “odores” fedorentos (8, 17).

Neste momento, a imagem da corrupção está completa. Ezequiel vê, por isso chegar sete enormes guerreiros exterminadores. No meio deles, um tem o vestuário (linho branco) e os apetrechos de quem escreve (tinteiro e tinta), que recorda a figura de Nebo, o escrivão do panteão babilónico. Antes que se desencadeasse a ira divina, o escriba coloca o sinal do tau na fronte de alguns que serão poupados pela carnificina. São os que «gemem e se lamentam por causa das abominações» (9, 3). São salvos os que sofrem pelas infidelidades dos outros. É o sinal de Caim, o sinal do anjo exterminador, colocado nas casas dos hebreus no Egipto, na noite da grande Páscoa. Quando a crise e a corrupção se tornam generalizadas e radicais, quando o povo está literalmente estragado, há ainda alguns que, na impotência, podem, pelo menos, chorar e sofrer e, se temos ainda lágrimas sinceras para chorar pela infidelidade do nosso povo, já nos estamos a salvar. No abandono, podemos ainda gritar, e aquele grito pode atrair uma ressurreição. O choro pela injustiça é o recurso extremo que, na noite, nos pode ganhar o sinal do tau que, no hebraico antigo, tinha a forma de cruz decussada, com os braços em diagonal, como a cruz de Santo André.

Ezequiel assiste, em visão, ao massacre dos guerreiros exterminadores, vê a “glória” do YHWH abandonar o templo (10, 18) e, depois, de rosto por terra, grita: «Ah! Senhor Deus, vais exterminar tudo o que resta de Israel» (9, 8). O profeta, que tinha acreditado na teologia do resto fiel, agora teme que esta grande esperança do resto também se esteja a apagar. É a grande prova do profeta, que se encontra entre o céu e a terra, que compreende as razões de Deus, mas procura, desesperadamente, uma salvação para os homens. A resposta de Deus não dá esperanças: «Disse-me: “O pecado da casa de Israel e de Judá é enorme; a terra está cheia de sangue e a cidade, de violência… Pois bem, Eu não terei um olhar de misericórdia, Eu não os pouparei”» (9, 9-10). Mas Ezequiel, o profeta do exílio, apesar deste veredito absoluto, continua a perguntar, espera contra toda a esperança e pede que um resto seja salvo. De facto, Ezequiel, talvez numa visão seguinte, encontra-se ainda no templo de Jerusalém, durante uma reunião dos “chefes do povo”. Nesta visão, recebe uma ordem de profetizar e, enquanto os homens ouvem as suas palavras, um membro do conselho (Pelatias) cai por terra, morto. Esta morte reacende a oração-intercessão de Ezequiel: «Caí com o meu rosto em terra e gritei em alta voz: “Ah! Senhor Deus, queres aniquilar o resto de Israel?”» (11, 13). À segunda pergunta, YHWH muda a sua resposta: «Diz: Assim fala o Senhor Deus: “Eu vos reunirei de entre os povos e vos reconduzirei de todos os países, para onde fostes dispersos”» (11, 17).

Também isto é missão do profeta: repetir a Deus a mesma pergunta, quando a primeira resposta não tinha salvado ninguém. É o homem da segunda oração, porque certas maldades são demasiado grandes para serem levantadas por uma única imploração. Se um farrapo vivo daquele resto salvado chegou até Nazaré e, depois, a nós, devemo-lo aos muitos profetas que souberam rezar uma segunda vez, que repetiram orações impossíveis, que “converteram” o seu Deus. A Bíblia está cheia destes “segundos olhares”, salvações chegadas depois de palavras que os profetas não deveriam ter dito e que, no entanto, disseram, por nós. Salvámo-nos, nas crises radicais e nas destruições totais, porque alguém – um pai, um amigo, uma mulher – souberam repetir uma oração uma segunda vez e aquela sua fé gerou uma mudança de olhar sobre nós. Não o sabíamos, talvez estivéssemos a dormir ou a gritar, mas foi aquela segunda oração a arrancar-nos da morte.

A Bíblia não quis nenhuma divindade a mediar entre YHWH e os homens, porque o seu Deus quis que fossem homens e mulheres, os profetas, a interceder por nós. Está aqui também o grande humanismo da Bíblia. E, quando os cristãos colocaram uma mulher e uma mãe nos seus templos, escolheram um ser humano, a mãe do Verbo-homem “nascido de mulher”. Nenhuma “deusa mãe” teria podido dar mais dignidade espiritual ao homem e à mulher. A Bíblia continua a elevar-nos, aproximando-nos da terra. Nós queremos voar, à procura da companhia dos anjos, e perdemos o olhar dos homens e das mulheres. Mas os profetas continuam a repetir as suas orações, deitados “com o rosto por terra”, no lugar mais espiritual que nos é dado debaixo do sol.

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