O exílio e a promessa / 4 – Saber ser fiel ao «resto» verdadeiro do nosso coração
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 02/12/2018
«Ao procurar as origens torna-se caranguejo. O historiador olha para trás; e acaba também por acreditar para trás»
Friedrich Nietzsche, Crepuscolo degli idoli
Os sinais religiosos são os que mais incidem na terra e mostram o carácter de uma cultura. Templos, altares, nichos, troncos separam, no território, o sacro do profano, revelam e dão nomes e vocações às terras, transformam os espaços em lugares. A terra tem inscritos, nas suas feridas, os nossos vícios e as nossas virtudes. Recebe, humilde as nossas pegadas; mansa, deixa-se associar às nossas sortes e, com uma sua misteriosa e real reciprocidade, comunica connosco. Entre as características da profecia, está também a capacidade de interpretar a linguagem da criação, de no-la contar, de falar em nosso lugar e em nosso nome. Que diriam, hoje, os profetas diante das chagas que estamos a infligir ao nosso planeta? Que palavras de fogo pronunciariam perante as nossas “alturas” povoadas de ídolos? Como profetizariam diante das nossas miopias e dos nossos egoísmos coletivos? Talvez gritassem, compusessem novos poemas, cantariam, cantam, Laudato si’.
«Foi-me dirigida a palavra do Senhor, nestes termos: “Filho de homem, volta-te para as montanhas de Israel, profetiza contra elas e diz: Montanhas de Israel, ouvi a palavra do Senhor Deus. Assim fala o Senhor Deus às montanhas e colinas, às ravinas e aos vales: Eis que vou fazer vir contra vós a espada e arrasarei os vossos lugares altos”» (Ezequiel 6, 1-3). Ezequiel profetiza contra os montes, tornados cúmplices das infidelidades do povo. Aquelas colinas, aqueles vales e desfiladeiros são também símbolos da criação que “geme” à espera de seres humanos seus guardas dignos. São os animais, as plantas, o solo e subsolo, oceanos e mares que, cada dia – e, em cada dia, cada vez mais – sofrem as consequências da transformação da nossa vocação de cuidado em tirania. Os profetas falam também por eles e em seu lugar – agora, entre terra e homem, entre homens e céu, mediadores cravados em cruzes, como mensagens de carne.
Desde a sua primeira posse de Canaã, o povo de Israel sentiu constantemente a sedução dos cultos cananeus. Era forte o fascínio daqueles deuses simples, naturais, marcados pelos ritmos e pelas imagens da fertilidade, e que se podiam ver, representar, tocar; sentiu a tentação da sua prostituição sagrada que, nos lugares altos, oferecia caminhos de união com a divindade. E, se não existissem os profetas, YHWH, o nome do seu Deus diferente e único, com o passar do tempo, tornar-se-ia um dos muitos nomes, um dos muitos deuses de muitos panteões dos povos vizinhos e vencedores. Os profetas são amigos de Deus e amigos do homem, que repetem: o homem é diferente porque Deus é diferente. Mantém Deus alto e transcendente para ter o homem o mais alto possível, para o não reduzir a consumador-consumado dos ídolos fabricados. Os profetas fazem com que a natural contaminação que uma fé recebe do encontro com os outros povos, não supere o limiar crítico e faça perder o fio vermelho da aliança e da alma coletiva. Sem o contágio religioso com a Babilónia, com o Egipto e com os povos cananeus, não teríamos muitas páginas belíssimas da Bíblia. Mas se aquela fertilização mútua entrasse na medula e no coração da Promessa, do Sinai, da Lei e do Pacto, aquele povo diferente da fé diferente teria sido absorvido pelas religiões naturais do Próximo Oriente. O profeta é sentinela também, porque toca a trombeta e dá o alarme, quando a contaminação supera o ponto crítico e se torna assimilação e sincretismo. E sabe que há um lugar onde estas contaminações não podem nem devem entrar: o templo, o lugar que guarda a nossa história mais íntima, o altar do pacto, o coração do nosso nome. E, consequentemente, o povo de Israel não deve entrar nos templos dos outros povos e adorar as suas divindades. Não só porque aqueles povos são adoradores de ídolos (Israel nem sempre pensou que todos os outros deuses fossem ídolos), mas também porque o dia em que um povo começa a entrar e a rezar em mais que um templo, está a dizer que, no fundo, não acredita verdadeiramente em nenhum deus (como o homem que está a dizer “amo-te” a mais que uma mulher, está a dizer, na realidade, que não ama verdadeiramente nenhuma). Eis porque a luta dos profetas aos santuários das montanhas diz-nos, poeticamente, coisas muito sérias – a poesia diz sempre coisas muito sérias.
Quando por exemplo, as comunidades nascidas de um carisma atravessam grandes crises, a tentação não está na eliminação ou no cancelamento do “Deus” da primeira aliança, mas na introdução, no próprio templo, de outras divindades que começam a pôr-se ao lado do primeiro “culto”. Importam-se orações, canções, práticas mais adaptadas ao espírito do tempo, mais simples e compreensíveis, que respondem melhor aos gostos dos “consumidores”. Dentro de um certo limite, estas chegadas podem ajudar e enriquecer. Mas se estas práticas estranhas entram dentro do “templo” e se nós começamos a frequentar os templos dos outros sem os distinguir do nosso, a contaminação começa a minar o pacto e a promessa; e chegará rapidamente o dia em que nos encontraremos a falar com o nosso primeiro Deus em templos totalmente iguais e não acontecerá nada de novo – muitas crises existenciais, individuais e comunitárias, nascem de atos de superlotação do lugar do primeiro encontro, que se torna tão denso que não se consegue ver nem ouvir mais nada.
Mas os santuários e os templos eram também lugares dos sacrifícios de animais e de crianças. Por detrás da crítica dos cultos cananeus e babilónicos está sempre, nos profetas maiores, a crítica ao uso do sacrifício como moeda para negociar com um Deus comerciante. A polémica duríssima dos profetas contra o ouro e a prata, não é uma crítica económica nem ética ao dinheiro usado para os negócios humanos; é uma crítica teológica e, portanto, antropológica; é uma condenação duma visão económica da fé e, portanto, da vida. O ouro é perigosíssimo porque se torna o material com que se fabricam os ídolos: ontem, as estátuas de Baal e de Astarte; hoje, os produtos e os bens que, como novos ídolos, nos vendem uma subespécie de eterna juventude. Quanto mais ouro se tem, maior é o preço que podemos pagar para os nossos sacrifícios. Os ladrões que profanam o lugar santo não são, pois, ladrões de coisas ou de dinheiro; são ladrões religiosos que subtraem ao homem a sua dignidade e o reduzem a servo dos ídolos: «Lançarão a prata para as ruas e o ouro será para eles como lixo. Nem o ouro nem a prata os poderão salvar, no dia da ira do Senhor. Não hão de saciar-se nem encher a barriga com eles… Sentiam orgulho na beleza das suas joias; com elas fizeram as suas imagens abomináveis, os seus ídolos; por isso, farei dessas joias objeto de vergonha para eles… Profanarão o meu tesouro [templo]; os bárbaros penetrarão nele para o violar» (7, 19-22). O dinheiro e o ouro são imundície quando não são usados para viver mas para fabricar qualquer espécie de ídolo. Esta natureza profunda das riquezas revela-se plenamente apenas no fim («O termo vai chegar, o fim aproxima-se de ti»: 7, 6). No fim da vida, quando for evidente a diferença radical entre as riquezas (materiais ou não) que usámos para alimentar e nos alimentarmos e as outras que usámos para criar ou comprar ídolos vendedores de ilusões. Ou então, nos outros “fins”, quando, dentro de uma grande crise, doença, depressão, compreendemos que só poderemos recomeçar se aprendemos a reconhecer outras riquezas que ainda não tínhamos visto em nós e à nossa volta.
No centro destas palavras duríssimas que o profeta dirige contra os lugares altos, os ídolos e as infidelidades do povo, atinge-nos como um raio do sol nascente um outro pedaço de teologia do resto (a Bíblia poderia ser contada como história do resto fiel): «Todavia, farei sobreviver no meio das nações alguns dentre vós que tiverem escapado à espada, quando tiverdes sido dispersos entre os povos. Então, os sobreviventes recordar-se-ão de mim entre as nações para onde forem dispersos… Então, recordar-se-ão que Eu sou o Senhor» (6, 8-10). Todavia: os profetas gostam muito deste advérbio, porque completa e adocica as suas palavras de julgamento. Os falsos profetas não conhecem os todavia, porque são ideológicos e rufias. Todavia é também um advérbio dos bons educadores, dos professores, dos responsáveis de comunidades que, depois de terem tido a força dos juízos de verdade, conseguem acrescentar o “todavia” da mansidão e da pietas, que é sal e fermento da massa que estão a amassar.
Este trecho sobre o resto diz-nos algo de essencial. Quando, nos exílios, queremos experimentar recomeçar de verdade, são duas as coisas verdadeiramente necessárias. A recomeçar não é o todo, mas uma parte, um pequeno resto vivo. Tinham formado uma família, feito nascer uma comunidade, uma empresa. Depois, chegou a crise e, por isso, a deportação e o exílio. Fomos dispersos e contaminados por muitos povos. Se, um dia, queremos continuar a mesma primeira história, temos de vencer a saudade do todo, não nos deixar seduzir pelo apelo forte do todo porque simplesmente, aquele todo já não existe. Mas podemos continuar verdadeiramente a nossa história sobre aquela pequena parte que permanece viva: dois trabalhadores da fábrica, uma criança, aquela única palavra boa que se salvou das muitas maldades que dissemos uns aos outros.
A segunda coisa diz respeito ao significado do indíssimo verbo recordar (“recordar-se-ão de mim”). No humanismo bíblico, recordar não é verbo de passado, é verbo de futuro. Recorda-se no deserto, nos campos de tijolos, no exílio, e recorda-se para continuar a acreditar na promessa que deve vir e que virá. No deserto, onde nos lançou a traição do nosso pacto matrimonial, não se recomeça celebrando um novo pacto, num novo altar, mas recordando que aquelas palavras eram verdadeiras, que uma parte verdadeira do nosso coração nunca saiu daquela Igreja e daquele primeiro altar. É aprendendo a recordar que se começa a ressurgir.
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