Raízes de futuro / 1 – O «Aut-Aut», Ou-Ou, de Kierkegaard e outras grandes ideias para este tempo de crises.
por Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 03/09/2022.
As empresas, como vendedoras, procuram consumidores sugestionáveis e, como produtoras, trabalhadores fiéis. As mesmas pessoas. E o conflito é incipiente, mas já é grave. Crises ambientais e energéticas desmascararam definitivamente o bluff: o tempo acabou. É necessário o arrependimento; não uma transição lenta, mas uma conversão forte.
«Imagina um capitão no seu navio no momento em que deve começar a batalha; talvez possa dizer “é preciso fazer isto ou aquilo; mas o navio, enquanto ele ainda não decidiu, avança. Também para o homem, no final, chega o momento em que já não tem liberdade de escolha, não porque tenha escolhido, mas porque o não fez». Esta página, tirada do Aut-Aut, do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, um livro de 1841, obra-prima do pensamento moderno, coloca-nos imediatamente diante da encruzilhada decisiva: «Aut-Aut, Ou-Ou: viver esteticamente ou viver eticamente». A estética «é o que o homem é espontaneamente, é o que é; a ética é aquilo em que se torna». Quem vive esteticamente diz: “É preciso gozar a vida”. O ícone da vida ética é o marido, o que fez uma escolha e vive a sua existência na fidelidade a um compromisso e a um pacto. A imagem da vida estética é o sedutor, o Don Juan, que voa de flor em flor, que colhe todos os frutos que encontra ao longo do seu caminho. Alimenta-se de emoções, tudo é tomado e perdido no presente sem qualquer necessidade de combinar as escolhas de hoje com algum compromisso de ontem. O esteta, como o define Kierkegaard (todo o grande autor inventa as suas palavras), vive disperso no múltiplo, num perene «estado de indiferença», porque «a escolha estética não é uma escolha», é um fluxo. O esteta não se presta a nenhuma missão, nenhum compromisso que não seja o que emerge momento após momento. Nunca saciado, sempre faminto de novas emoções para consumir, numa busca espasmódica de felicidade que não chega porque devorada pelo prazer.
Não é difícil identificar, na nossa sociedade de consumidores, a realização perfeita da vida estética, descrita por Kierkegaard. O cidadão, habitante da cidade global capitalista, é tanto mais perfeito quanto mais voa de flor em flor para sugar as oportunidades que se lhe apresentam. A infidelidade e a traição são qualidades necessárias do homo consumens, porque toda a forma de condicionamento que uma escolha passada exerce sobre as presentes é um vínculo ineficaz de que se deve libertar. O consumidor ideal é o que renasce em cada dia, sem passado nem futuro, todo mergulhado no presente onde satisfaz ao máximo os seus gostos. Pactos, promessas, fidelidade são autênticos atritos do sistema, porque o que torna fluido e eficaz o capitalismo é precisamente a velocidade da reação dos consumidores face à mínima variação de qualidade e de preço.
As empresas, por seu lado, apresentam-se, na relação com os consumidores, como agências de oferta de infinitos objetos de prazer. Desde sempre, nos mercados, os sedutores são os vendedores e os seduzidos são os clientes, conquistados e enfeitiçados pelos bens oferecidos. As mercadorias são os instrumentos com que se exercita a grande sedução. Consumidores insaciáveis – a não-saciedade é um axioma da teoria económica do consumo – continuam cercados, seguidos e seduzidos pelas mercadorias. No passado, esta sedução estava também aliada aos gestos, às piscadelas, à voz e às palavras dos vendedores; os seus lugares eram as feiras e os mercados nas praças da cidade. Sempre houve uma analogia entre eros e comércio, entre a sedução amorosa e a mercantil; mas, nos mercados mestiços das gerações passadas, ao lado do eros compareciam também a philia e o ágape, que libertavam o eros da jaula do eterno presente. Hoje, a sedução é fabricada nos centros de estudos e marketing das grandes multinacionais e realiza-se, sobretudo, nos media e na rede; logo, sem corpos. A tendência sedutora da economia, no entanto, aumentou, o mercado tornou-se cada vez mais um grande mecanismo de sedução anónima de massa, um enorme sistema de cortejamento. Mas é a sedução de um eros sem corpo – não é de admirar, portanto, que num mundo cada vez mais sedutor e “erótico”, centrado na procura da saúde e do bem-estar do corpo, esteja a diminuir, na realidade, o desejo de corpos verdadeiros, viciados por corpos imaginados e não tocados.
O capitalismo é um imenso jardim das delícias, infinitos sedutores e seduzidos afundados no momento fugidio, novos lotófagos desmemoriados de passado e ainda mais de futuro. O século XX conheceu um sucesso enorme e imprevisto da civilização da estética. Num mundo que ainda vivia na escassez generalizada, o crescimento exponencial dos consumos permitiu um bem-estar extraordinário geral, sobretudo no Norte e no Ocidente. Este bem-estar das mercadorias seduziu-nos, primeiro o corpo e, depois a alma. No crepúsculo dos deuses, emergiram novos-antigos ídolos brilhantes de ouro e de prata. E, assim, o capitalismo tornou-se a nova religião, toda estética, sem inferno, uma nova vida eterna: apenas paraíso sem tempo. A categoria de tentação foi completamente apagada e ridicularizada, porque é incompatível com a civilização estética que a vê como uma limitação indevida das oportunidades aqui e agora. Um culto diário e instantâneo, cuja dimensão efémera lhe determina um sucesso extraordinário: se o seu paraíso só pode ser usufruído no próprio momento do seu consumo, o único modo para não sair desta bem-aventurança é não deixar de comprar – se for a débito, melhor – porque a nova finança perverteu o sentido económico do tempo. No passado, o crédito permitia ao presente tornar-se futuro; agora, o crédito ao consumo transforma o futuro no presente. Também a ética das virtudes conhece o valor do presente, mas o seu presente é o lugar onde se encontram passado e futuro e impedem o presente de afundar no nada.
Um primeiro sinal forte de crise do capitalismo estético surgiu do próprio mundo empresarial. As empresas, como vendedoras, têm necessidade de consumidores estéticos, mas as empresas, como produtoras, precisam de trabalhadores capazes de ética, de fidelidade, de lealdade. Mas os consumidores e os trabalhadores são as mesmas pessoas, muda apenas a máscara em cena. Assim, nasce um conflito visceral no capitalismo, que ainda é incipiente, embora grave: para poder vender e crescer, as empresas incentivam a cultura estética dos consumidores, mas quando estes passam os portões das empresas, são cada vez mais privados daquele capital ético de que as empresas têm uma necessidade vital. Por detrás do recente movimento das “grandes demissões” do mundo do trabalho estão muitos fatores, mas está também uma sociedade que está corroendo, sobre o altar do consumo, os seus patrimónios civis e se encontra com jovens “estetas” incapazes de aguentar o impacto com o trabalho, que permanece um lugar de sacrifício, de obrigação, de cansaço. O capitalismo quer-nos adolescentes no consumo e adultos no trabalho e está a tornar “adolescente” o mundo adulto.
Mas quem desmascarou definitivamente o bluff do capitalismo estético foi o ambiente. A crise ecológica, da qual também a crise energética é expressão direta, traz à ribalta económica e política a grande questão de Kierkegaard: Aut-Aut. Uma opção fundamental que hoje tem uma inédita valência coletiva e global porque, pela primeira vez, diz respeito a cada habitante do planeta. O tempo acabou: é impossível continuar na indiferença da vida estética.
Kierkegaard, em Aut-Aut, diz-nos que a etapa intermédia, para passar da estética à ética, se chama desespero. Não se passa da ética à estética com uma lenta transição ecológica. O desespero é um momento, é uma mudança de olhar: não é ascese; é metanoia, isto é, conversão radical. «A condição do teu desespero é bonita. Escolhe, portanto, o desespero». O desespero nasce do arrependimento: «A verdadeira salvação do homem é desesperar». Kierkegaard contrapõe o desespero à dúvida: «O desespero é a salvação de toda a pessoa; a dúvida limita-se apenas ao pensamento». A dúvida envolve a razão, o desespero toda a existência. Pensar uma crise não chega, frequentemente é a enésima desilusão. Há décadas que nos afundamos em dúvidas sobre a sustentabilidade: Congressos, comissões, intermináveis debates, apelos, discussões… A era das dúvidas deve dar lugar à do arrependimento coletivo e, portanto, ao desespero que antecede uma nova escolha ética: «Desespera e o mundo tornar-se-á novamente bonito e cheio de alegrias para ti, mesmo que o vejas com olhos diferentes de antes». É preciso desesperar com todo o coração, com toda a mente, com todas as forças, mas juntos: um justo desespero coletivo é salvação.
São precisos atos simbólicos fortes e coletivos de arrependimento, pedir desculpa ao presente e ao futuro, de imediato. E, depois, sentir o desespero, porque o desespero é a parteira de uma esperança não-vã depois da idade da ilusão. Só uma economia arrependida e desesperada pode tornar-se uma economia ética.
Neste processo coletivo vital e necessário de arrependimento-desespero-ética, precisamos, principalmente, de mestres verdadeiros. Sozinhos não conseguiremos. São precisas palavras diferentes das nossas. Temos encontrado muitas nestes anos, na Bíblia, e usá-las-emos. Nesta nova série de reflexões, Raízes de futuro, pedimos palavras maiores aos escritores, aos filósofos, aos poetas, pessoas-raiz que sentiram o desespero do seu tempo e experimentaram ver um outro “com olhos diferentes”. Boa caminhada.