No ventre da Palavra / 3 – A fuga do profeta e a convicção de ser a causa do drama iminente
por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 03/03/2024
“Qualquer comunidade dominada pela violência ou oprimida por algum desastre lança-se, de bom grado, numa caça ao ‘bode expiatório’. Os homens querem convencer-se que os seus males dependem de um único responsável de que será fácil livrar-se”
R. Girard, A violência e o sagrado, p.118
«Desceu a Jafa, onde encontrou um navio que partia para Társis; pagou a sua passagem e embarcou nele para ir com os outros passageiros a Társis, longe da presença do Senhor» (Jonas 1, 3). Jonas sai no primeiro barco e foge. Paga ‘a passagem’ e, depois, embarca ‘com os passageiros’. Na Bíblia, quando estão em jogo a vida e a morte, desponta frequentemente o ‘preço de mercado’ e onde não o esperávamos. Como para Abraão, na aquisição da terra para sepultar Sara (Gn 23) ou em Jeremias, para o campo de Anatot (Jr 32), dois episódios chave onde a referência ao preço reforça a solenidade extrema desses gestos. Quando, na Escritura, encontramos um preço, devemos interpretá-lo também como um sinal, um símbolo de outra coisa. Dizendo-nos que Jonas pagou o preço do bilhete para embarcar, a Bíblia está, portanto, a acrescentar a solenidade espiritual deste momento determinante da história de Jonas. O Deus bíblico aprendeu a ‘falar economia’ porque quer falar-nos de vida e de morte, porque quer fazer-se compreender por nós – também nestes pormenores se esconde a laicidade verdadeira da Bíblia.
Há, depois, aquele ‘embarcou com os passageiros’. Naquela fuga de Deus, Jonas encontra – talvez procure – uma companhia humana, como se a presença de um grupo de homens pudesse substituir a ausência do Senhor; como se o barulho das vozes daqueles companheiros de (des)ventura fosse capaz de o fazer esquecer o som da outra voz que não tinha querido escutar. Quando se foge de si mesmo, parte-se sozinho, mas chega-se em companhias, frequentemente improváveis, improvisadas e precárias, preferidas, no entanto, à solidão que nos devolve um eco que nos aterroriza: enchemo-nos com muitas vozes para esquecer aquela voz solitária. As companhias são, por vezes, também isto.
«Porém, o Senhor fez vir sobre o mar um vento impetuoso, e levantou no mar uma tão grande tempestade que a embarcação ameaçava despedaçar-se. Cheios de medo, os marinheiros puseram-se a invocar cada um o seu deus e alijaram ao mar toda a carga do navio para, assim, o aliviar. Entretanto Jonas tinha descido ao porão do navio e, deitando-se ali, dormia profundamente» (1, 4-5). Mas… depois do ‘porém’ de Jonas (1, 3), eis uma outra conjunção adversativa narrativa e teológica. Os marinheiros deitam ao mar as suas cargas, mas ainda não sabem que a verdadeira carga no barco é Jonas. Rezam aos seus muitos deuses – portanto, são pagãos – “representantes das setenta nações da terra” (Ginzberg, As lendas dos hebreus, VI, p. 194). O barco está a afundar-se, mas Jonas, continuando a sua descida e a sua fuga, tinha acabado na parte mais baixa. Ali, caído num sono muito profundo, não é acordado pela tempestade. Não é o sono bom de Adão (Gn 2, 21) nem o das visões e das profecias de Daniel. Pelo contrário, é o sono diferente do deprimido, algo de parecido ao sono de Elias debaixo do junípero (1Rs 19, 4), ao sono de quem se embriaga para não pensar mais na vida, esperando, talvez, não acordar mais. Daquele sono não o desperta um anjo, mas o grito de um homem: «O capitão do navio foi ter com ele e disse-lhe: “Dormes? Que fazes aqui? Levanta-te, invoca o teu Deus, a ver se porventura se lembra de nós e nos livra da morte”» (1, 6). O capitão usa a mesma linguagem que Deus tinha usado no chamamento de Jonas – “Levanta-te, invoca” (1,1) – em hebraico: qûm, qāra’. Jonas não tinha respondido ao convite de YHWH, mas, agora, parece responder ao convite de um homem – quantas pessoas recomeçam a dialogar com um Deus que já não compreendem se forem alcançadas, num porão da terra, pelo grito dos pobres e, naquele grito de dor totalmente humano, começam uma nova aprendizagem da voz de Deus!
Lançaram sortes e a sorte caiu em Jonas. Perguntaram-lhe: «Diz-nos por que nos aconteceu este mal. Qual é a tua profissão? Donde vens? Qual a tua terra e a que povo pertences?» (1, 8). Lançar sorte era, no mundo antigo, Bíblia incluída (por ex.: Js 7, 17; At 1, 26), um meio para compreender, nalguns contextos, a vontade divina.
Mas eis-nos no centro deste primeiro capítulo: entre os marinheiros insinua-se a lógica do “bode expiatório”. Naquela situação de perigo extremo e de iminência da morte, ganha forma a pergunta tão simples quanto errada: de quem é a culpa? O recurso (ilusório) de última instância torna-se a identificação de um culpado a quem atribuir a culpa e, depois, lançá-lo fora da comunidade para restabelecer a paz com a divindade e aplacá-la. A vítima sacrificial deve ser culpada e a comunidade deve convencer-se da sua culpabilidade para que a expulsão seja merecida – quantos ritos de bodes expiatórios em cada meritocracia! Para René Girard, o bode expiatório deve reunir algumas características: a) ter sinais evidentes de diversidade física ou moral (um defeito físico ou psíquico, evidente diversidade cultural, religiosa ou étnica); b) ser um elemento não essencial para a sobrevivência do grupo, uma pessoa ‘extrema’ (um rei ou um marginal); c) o bode deve ser um membro do grupo sem fazer parte dele, sem ser um elemento essencial; d) por fim, o bode expiatório, uma vez sacrificado assume, paradoxalmente, qualidades divinas, pois é-lhe atribuída a salvação da comunidade. Deste modo, a escolha da vítima recai sobre alguém cuja morte não será vingada e, assim, a violência não se tornará ‘mimética’.
Jonas possui todas estas características: é diferente («Sou hebreu e adoro o Senhor, Deus do céu, que fez os mares e a terra» (1, 9)); está fora do grupo dos marinheiros; portanto, ninguém o vingará; por fim, apaziguará as águas. Falta apenas a sua culpa evidente: esta a fornecerá o próprio Jonas.
A (longínqua) referência bíblica ao mecanismo do bode expiatório encontra-se no Levítico (16, 9-10), num trecho onde aparece uma misteriosa divindade arcaica (‘Azazel’) a quem é oferecido o bode expiatório: «O bode, que a sorte designou para Azazel, deverá ser apresentado vivo diante do Senhor, a fim de fazer sobre ele o rito da purificação e ser enviado a Azazel, no deserto» (Lev 16, 10). É importante referir que também neste caso o bode a enviar para o deserto é escolhido ‘lançando as sortes’ (16, 8) – como com Jonas.
Estes versículos estão construídos à volta da tensão inocência-culpa: «Senhor, não nos faças perecer por causa da vida deste homem, nem nos tornes responsáveis do sangue inocente» (1, 14). Para os marinheiros, que não têm todas as informações, Jonas é um bode expiatório imperfeito, por causa da sua culpabilidade duvidosa – e, por isso, antes, tentam chegar até à margem: «Os homens remavam para ver se conseguiam ganhar a terra, mas em vão» (1, 13). Mas nós, leitores, sabemos, pelo contrário, que Jonas não é inocente e por isso, no livro, o mecanismo do bode expiatório funciona perfeitamente.
Mas eis outra reviravolta: «Eles disseram-lhe: “Que te havemos de fazer para que o mar se nos acalme?”. De facto, o mar estava cada vez mais embravecido. Ele respondeu-lhes: “Pegai em mim e lançai-me ao mar, e o mar se acalmará, porque por minha causa é que vos sobreveio esta grande tempestade”» (1, 11-12).
Jonas pede para ser lançado ao mar.
Nesta cena maravilhosa encontramos ecos importantes do Servo de YHWH do segundo Isaías (cap. 55), onde um inocente se torna vítima vicária pelo povo. Mas muitos (e, entre estes, Jerónimo, Comentário a Jonas, p. 58) veem aí uma prefiguração do Cristo, um outro bode expiatório inocente – e como não o fazer à luz das palavras dos marinheiros dirigidas a Deus: «Não nos tornes responsáveis do sangue inocente» (1, 14), que encontraremos, séculos depois, no relato da Paixão (Mt, 27, 25)? É também interessante notar que Girard também nos oferece uma leitura original do misterioso ‘sinal de Jonas’ que encontramos nos evangelhos: “O que é o sinal de Jonas? A referência de Mateus à baleia não é muito esclarecedora e é preferível o silêncio de Lucas… O ‘sinal de Jonas’ designa, mais uma vez, a vítima coletiva” (O bode expiatório, p. 186).
Nestes poucos e densos versículos, entrelaçam-se vários registos narrativos e teológicos, todos de grande relevância sob muitas perspectivas.
No centro, está a experiência de Jonas. Sente ser ele a causa daquela tempestade e daquela morte próxima, porque a associa à sua desobediência a Deus – “Eu sei…”. Uma experiência – a de Jonas – que se pode repetir sempre que uma pessoa acredita que exista uma ligação entre a sua desobediência espiritual-moral e um problema que acontece a seu lado (numa família, numa empresa, numa comunidade…). O que conta é a crença subjetiva, não a verdade objetiva daquela crença. Uma mulher, um homem cometeu um erro, talvez um pecado. Por isso, encontra-se num lugar errado. Ali, acontece uma desgraça, uma dor coletiva. Começa a acreditar que essa dor não teria acontecido sem o seu ‘não’ de ontem e encontra uma relação evidente de causa-efeito. Assim, desemboca num grande sofrimento psicológico-espiritual – entre os maiores – e, na procura desesperada de uma solução, pode, um dia, começar a pensar obsessivamente que a única solução verdadeira é a sua saída de cena. E se, enquanto aquele novo Jonas vive esta ‘provação’ pessoal, ao mesmo tempo se desencadeia, em relação a ele, um mecanismo coletivo de bode expiatório, esta ‘pinça’ produz consequências muito graves se não intervir alguém ou alguma coisa para quebrar este ciclo de morte. Porque a terrível lógica do bode expiatório torna-se perfeita quando consegue um duplo exercício maligno: (1) a comunidade convence-se da culpa da vítima e – elemento essencial – (2) a vítima convence-se da própria culpabilidade e, assim, diferentemente dos animais, é ela própria que pede para ser lançada ao mar. Como Jonas: «Pegaram em Jonas e lançaram-no ao mar e a fúria do mar acalmou-se» (1, 15). A primeira dúvida dos marinheiros que procuram evitar a morte de Jonas pode ser lida também como um ‘não’ da Bíblia à legitimação de tais terríveis mecanismos sociais de morte que vemos repetirem-se todos os dias.
Salvamo-nos destas armadilhas mortais se não perdemos, no porão do nosso coração, a fé numa inocência mais profunda e verdadeira do que as nossas culpas – ou se alguém conservar, para nós, esta fé que perdemos.