Maiores que a culpa / 30 – O último capítulo chega, frequentemente, com um tempo diferente
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 12/08/2018
«Moisés viu que o Senhor escrevia a palavra “Longânime” na Torá e perguntou: “Isto significa que és paciente com os devotos?”. “Não; sou-o também com os ímpios”. “Como? – exclamou Moisés – Os ímpios merecem morrer”. O Eterno não replicou».
Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei [As lendas dos hebreus]
Também nas histórias maiores chega o último capítulo. Por vezes é o capítulo mais belo, é sempre o destilado da toda a vida. Mas, enquanto nos romances, o bom leitor sabe individualizar o momento em que a ideia do relato sofre a última torsão e se prepara para a conclusão, quando tentamos ler o nosso livro, que estamos a escrever, quase nunca somos capazes de captar o momento do início do declínio e mudar. Porque, simplesmente, amamos demasiado a vida e as suas palavras e amamos demasiado as ilusões. E, assim, a última página apanha-nos, frequentemente, impreparados, porque não conseguimos inseri-la dentro do último capítulo, que lhe teria dado ritmo e sentido. Perdemos o fio da história e, por vezes, perdemo-nos.
Tudo isto é particularmente relevante e trágico quando temos que lidar com os “reis”, com os líderes, sobretudo com os chefes carismáticos e com os fundadores das comunidades e movimentos espirituais e ideais, isto é, com pessoas portadoras de um carácter de fundação e de guia moral dos outros. Aqui, é verdadeiramente crucial que o “rei” consiga compreender quando chegou o momento de “deixar de descer ao campo de batalha” para entrar numa nova dimensão da vida individual e coletiva. Esta é a idade da “guarda da lâmpada”, quando a comunidade ou a organização deve – ou deveria – pedir ao próprio fundador de se tornar memória e sinal vivo do carisma e do ideal, de colocar em segundo plano a sua pessoa para que a luz que emana da lanterna tenha o primeiro lugar. A experiência mais importante de um fundador e da sua comunidade é, de facto, a consciência da distinção – que deve ser nítida e explícita – entre e luz e a guarda da luz. Ao longo da vida, esta distinção, por vezes, esfuma-se, e a comunidade confunde a realidade iluminada (o fundador) com a luz e a sua fonte. Eis porque o repouso deste último capítulo pode ser determinante para o futuro da comunidade, para fazer, no fim, quanto não se fez durante. Pelo contrário, quando esta fase não chega, ou chega demasiado tarde, o rei arrisca morrer na batalha e, ainda mais grave, a luz da lanterna arrisca, seriamente, extinguir-se com a morte de quem a tinha acendido. A luz poderá continuar a iluminar depois de nós se dermos, a nós mesmos e à comunidade, um tempo último e diferente. Porque é justamente naquele tempo, manso e humilde de guarda da chama, onde um “rei” diz, com a carne, que ele não era a luz, mas apenas o seu guarda.
«Houve novamente guerra entre os filisteus e Israel. David saiu com os seus homens para combater os filisteus. David sentiu-se fatigado. Então, apresentou-se um dos filhos de Harafá… declarou que ia matar David. Mas Abisai, filho de Seruia, foi em socorro de David, feriu o filisteu e matou-o. Então, os homens de David fizeram este juramento: “Não virás mais combater connosco, para que não se apague a lâmpada de Israel”» (2 Samuel 21, 15-17).
David está cansado, mas desce do mesmo modo ao acampamento. Ali, coloca em risco a própria vida e são os seus generais a fazer-lhe um juramento solene, uma espécie de novo pacto que marca o início da última etapa de David, a sua progressiva retirada do governo que abrirá caminho ao seu filho Salomão.
Aqui, o “povo” vê aquele cansaço novo e diferente e pronuncia uma promessa. Na história de David há um juramento a marcar esta fase, uma promessa pronunciada por iniciativa dos seus generais. No texto, David não responde; aquele juramento opera unilateralmente apenas pela força da palavra pronunciada pelos únicos representantes do povo. Na vida das comunidades existem, por vezes, pactos semelhantes, onde é a comunidade a tomar a iniciativa. Os reis quase nunca estão em condições de compreender que estão “cansados”, porque este tipo de cansaço carismático só é visto pelas pessoas que estão próximas do chefe. É um cansaço relacional, e os membros da comunidade, se são honestos e não rufias, têm o dever de tomar a iniciativa e fazer entrar o rei no último capítulo. Não são escolhas fáceis e são sempre dolorosas, porque a comunidade está habituada a escutar e seguir, e porque a fronteira entre esta promessa e a conjura não é, realmente, simples de identificar – por detrás da comunidade que não sobreviveu ao próprio fundador existem conjuras confundidas com promessas e acolhidas pelo rei e promessas confundidas com conjuras e rejeitadas.
Segue-se, depois, o relato das gestas heroicas de alguns guerreiros de David, onde encontramos também uma versão diferente da morte de Golias pela mão, não de David, mas de El-Hanan (21, 19) – a Bíblia, aqui, não tem medo de mostrar, no auge da vida de David, uma negação de um dos mitos fundadores do seu herói. Chegamos, depois, ao único salmo de David, referido integralmente nos Livros de Samuel. É um salmo longo e intenso, que ocupa todo o capítulo 22. O redator colocou-o como conclusão da vida de David, como um testamento e selo. É o princípio do seu último capítulo, o tempo de agradecimento a Deus, à vida, aos companheiros. Também pode ser o tempo dos salmos, para os poetas, como David, e para cada um na sua própria linguagem – há salmos esplêndidos, compostos com os nomes dos filhos e dos netos, com as fidelidades e as lealdades silenciosas, sussurrando apenas uma Ave-Maria, porque esquecemos todas as outras orações: o último salmo da vida não pode ser privilégio dos poetas.
Eis alguns versículos: «O Senhor é minha rocha, meu baluarte e meu libertador; Deus, meu rochedo, em quem confio… Estendeu do alto a sua mão para me segurar, e livrar-me das águas profundas. Libertou-me do meu poderoso inimigo, dos que me odiavam, pois eram mais fortes do que eu… O Senhor me recompensou pela minha retidão, retribuiu-me conforme a pureza das minhas mãos. Pois segui os caminhos do Senhor e não pequei contra o meu Deus… Para quem é fiel, Tu és fiel, com o homem íntegro, Tu és íntegro… Por isso te louvarei, Senhor, entre os povos e cantarei hinos em honra do teu nome» (22, 2-50). E, no centro do salmo encontramos: «Tu és a minha lâmpada, Senhor; o Senhor ilumina as minhas trevas» (22, 29). David aprendeu que a lâmpada de Israel não era ele e, por isso, no termo da sua vida pode guardá-la (toda a guarda requer a alteridade da coisa guardada).
São muitos os sentimentos que se cruzam na alma, ao ler este grande salmo. David era um cantor e tocador de harpa e também nesta alma artística está o afeto com que o rodeou toda a Bíblia. Também esta sua oração poética intensa nos enfeitiça e nos conquista. Mas quando experimentamos ler os conteúdos do cântico, temos de experimentar dizer também outras palavras.
Sempre foram muitos os crentes que se serviram de Deus para dar uma unção sagrada às suas vitórias e riquezas. A “teologia da prosperidade” tem raízes bíblicas antigas e isto porque a Bíblia, sendo imensa, se presta também a ser abusada e manipulada (como todas as coisas verdadeiramente belas e imensas da vida). A Bíblia teve necessidade de génios teológicos e de muito tempo para conseguir compreender que estar do lado de Deus não significa estar do lado dos vencedores e que o nosso Deus, o dos nossos amigos e o dos inimigos é o mesmo Deus – porque se não fosse o mesmo Deus, também YHWH, o Deus verdadeiro de diversíssimo, seria um ídolo. E se o Deus dos perdedores é o mesmo dos vencedores, se o Deus dos pobres é o mesmo Deus dos ricos, se o Deus dos sãos é o mesmo Deus dos doentes, então uma mensagem que nos chega da Bíblia (e das religiões não idolátricas) é a laicidade de Deus. Porque Deus é deixado fora dos nossos negócios e das nossas guerras, da nossa saúde e das doenças nossas e dos outros, das nossas Bolsas e das especulações financeiras. Podemos encontrá-l’O por toda a parte, em tudo e em todos; mas não é o Deus bíblico se o encontramos apenas do nosso lado.
A história de Israel, depois de David, ensinará ao povo hebraico que o seu Deus será um Deus derrotado, o seu povo eleito um povo deportado, o seu templo invencível um monte de escombros e a força de YHWH será simbolizada por um menino e por um “pequeno resto” fiel. Mas, daquele exílio, florescerão os cânticos do servo sofredor de YHWH (Isaías) e muitas grandes palavras proféticas. Sem o exílio e sem aquela grande derrota, nunca teríamos tido Job e Qohélet, que nos deram outros rostos verdadeiros do Deus Bíblico.
O salmo de David é também um perfeito exemplo de religião retributiva («O Senhor me recompensou pela minha retidão, retribuiu-me conforme a pureza das minhas mãos»). E, quando são os vencedores, os poderosos e os ricos a dizer estas palavras do salmo de David, a experiência da fé é sempre colocada em risco. Porque é muito fácil passar do agradecimento pela vitória e pela riqueza a pensar “porque venci e sou rico, então Deus está comigo”) e, depois, talvez, acrescentar: “Deus não está com quem não vence e é pobre”. E a fé estraga-se, torna-se um instrumento de condenação e de maldição para os pobres, para os perdedores, para os crentes num Deus diferente.
Os salmos de louvor de David ao Deus vitorioso devem ser meditados juntamente aos cânticos do Deus derrotado, em leitura sinótica. E, se quando entoamos o cântico de David pelas nossas vitórias, não o fazemos com a alma e o olhar fixo nos cânticos diferentes, gritados e berrados pelos desesperados e rejeitados, estamos a falar com Baal, mesmo se o chamamos Deus ou Jesus. Um teste para a verdade de toda a oração é experimentar recitá-la ao lado das vítimas da terra, sem vergonha. O salmo de David é também o cântico da fé jovem e adolescente, quando pensamos que o pacto com o único Deus verdadeiro nos associará às suas vitórias e, assim, nos sentimos omnipotentes – o fascínio e o mistério da religião está também na sua capacidade de nos fazer saborear a embriaguez da omnipotência. Depois, cresce-se; encontramo-nos impotentes e frágeis porque adultos, e frequentemente perde-se a primeira fé se, justamente ali, no exílio e sem templo, não chega o dom de uma nova relação com um Deus que nos ressuscita, permanecendo, em silêncio, connosco sobre o monte de estrume, e acompanhando o nosso grito, como fez com o grito do filho, a oração mais bela de todas. Para chegar, finalmente, ao último capítulo e, ali, encontraremos a mesma voz da primeira página.
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