A árvore da vida / 18 - José, predileto e não amado, portador de salvação
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 15/06/2014
“Meu muito amado! [...] Eleito e preferido pelo coração ousado em atenção à única amada, que viveu em ti e com cujos olhos me estás mirando como ela me olhou uma vez junto ao poço, quando surgiu entre as ovelhas de Labão e eu arredei a pedra do poço para ela. Ela deixou que eu a beijasse e os pastores gritaram exultando: ‘Lu, lu, lu!’. Em ti, querido, a conservei quando o Todo Poderoso a afastou do meu lado; ela sobreviveu na tua beleza e que coisa é mais doce do que é duplo e duvidoso?” (Thomas Mann, José e seus irmãos).
As personagens bíblicas não são máscaras de uma peça de teatro. Não interpretam um papel ou figura (bom-mau, traidor-traído, etc.). São seres humanos, com as mais várias tonalidades e fisionomias que a humanidade apresenta.
Algumas destas personagens receberam um chamamento especial em vista de uma missão e de uma salvação coletiva, mas nunca deixaram de ser inteiramente homens e mulheres. Bondade, pureza, aldrabices, furtos, bênçãos, abraços, fraternidade, fratricídios, entrelaçam-se e dão vida a uma história verdadeira de salvação para todos. Os protagonistas do Génesis estão perto de nós e dizem-nos alguma coisa porque se mostram na nudez das suas emoções e ambivalências sem receio, até, de mergulhar na mesquinhez e nas contradições da condição humana. Compõem assim uma salvação possível para todos e uma cura eficaz para qualquer ideologia, incluindo as muitas ideologias da fraternidade.
José – protagonista do último (grandioso) ciclo do Génesis – não é recordado como o quarto patriarca (sempre se dirá “O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”). É filho de Jacob e Raquel, mas, sobretudo, José é irmão e a sua história é um grande ensinamento sobre a gramática da fraternidade bíblica (e nossa).
José era filho de Raquel, a mulher de quem Jacob-Israel se tinha enamorado junto ao poço. O seu pai tinha por José um amor especial, uma explícita e conhecida predileção. O texto afirma-o, sem medo: “Israel gostava mais de José do que de qualquer outro filho” (37,3). Por isso “ofereceu-lhe uma capa muito vistosa” (37,3). Era uma túnica (ketônet passîm) especial, diferente da que usavam os irmãos: longa, com as mangas a cobrir a palma da mão, talvez multicolor e com bordados; no dizer de Thomas Mann tinha sido a veste que Labão, o pai de Raquel, comprara a mercadores para a festa de casamento; tinha anteriormente pertencido à filha de um rei. Era certamente uma veste de luxo, não muito própria para quem tem que trabalhar. Uma forte mensagem de predileção e de status no interior do clã que os irmãos entenderam claramente: “Ao verem os seus irmãos que o pai gostava mais dele do que de qualquer um dos outros, começaram a detestá-lo e nem sequer o saudavam” (37,4). A esta já complexa situação familiar – filhos de mulheres que Jacob amava diversamente, filhos de escravas, um predileto – acrescenta-se um outro elemento para complicar ainda mais a narrativa: José é um sonhador; pior que isso, conta os seus sonhos em público. Diferentemente de seu pai, não sonha com o paraíso nem ouve as palavras de JHWH (ao longo de todo o ciclo de José, Deus permanece muito nos bastidores; toda a cena é preenchida com os relacionamentos inter-humanos). O protagonista dos seus sonhos é ele mesmo: “Ouçam lá o sonho que eu tive: Estávamos nós a atar os feixes no campo e, nisto, o meu feixe levantou-se e ficou de pé, enquanto os vossos feixes que estavam à sua volta se inclinavam diante dele” (37,7).
Por isso os irmãos “ainda mais o detestaram por causa dos sonhos e da explicação que ele deu” (37,8). Teve depois outro sonho: “Era o sol, a lua e onze estrelas que se inclinavam diante de mim” (37,9). Depois do segundo sonho, Jacob (que se reconheceu no “sol” do sonho) repreendeu-o (37,10); e os irmãos (‘as onze estrelas’) “tinham ainda mais inveja dele” (37,11). De modo imprudente e ingénuo, com a impetuosidade e a bela imaturidade da juventude, mas também pelo seu temperamento-missão (os sonhos são parte da sua vocação), José – o filho que usava o manto real e que seus irmãos já não amavam por causa da predileção do pai por ele – começa a contar os sonhos; o sentimento de inveja-ciúme dos irmãos transforma-se em verdadeiro ódio e num plano de ação para o eliminar. E assim, quando José encontra os irmãos que acompanhavam os rebanhos na região de Siquém – enviado (imprudentemente) pelo pai a ver se estavam bem (shalom) – logo que o avistam ao longe esclamam: “Lá vem aquele sonhador [o patrão dos sonhos]” (37,19). Decidiram matá-lo (“Aproveitemos agora! Matamo-lo e atiramo-lo a um poço...” (37,20)). Graças à intervenção de Rúben, o mais velho, mudaram de ideia e decidiram lançá-lo numa cisterna do deserto (“Não lhe tirem a vida. Atirem-no para aquele poço que está no deserto” (37,22). Acabaram por seguir uma sugestão de Judá: venderam-no a uma caravana de mercadores que passava (“Vamos mas é vendê-lo àqueles ismaelitas” (37,27)).
Este fim trágico de José – descobriremos mais tarde que foi também salvífico, mas de momento não o sabemos, e não temos que o saber – depende de um elemento decisivo: os irmãos acreditam nos sonhos de José. São eles que os interpretam e lêem o conteúdo desses sonhos como verdadeira revelação ou profecia. É a força de verdade dos seus sonhos e da sua palavra que condena José. Se os irmãos não tivessem visto em José potencialidade para vir a ser o ‘primeiro feixe’ da família, ter-se-iam limitado a ridicularizar a vaidade do rapaz. Mas reconhecem que a predileção do pai pode estar ao serviço de um plano divino e de um talento natural que colocam José acima deles.
Surge então, com José, um novo tipo de conflito intra-familiar. Até então, os conflitos na casa de Abraão tinham sido duais: Caim/Abel, Sara/Agar, Jacob/Esaú, Lia/Raquel. Agora é o conflito entre um irmão e os outros irmãos. Estamos perante uma discriminação comunitária, uma inveja-ciúme coletiva que se traduz em perseguição violenta seguida de expulsão, muito próxima do fratricídio.
A inveja coletiva para com uma só pessoa é grave e difusa doença social, organizativa e comunitária. Encontramo-la sempre que num grupo se cria certa perversa solidariedade através do processo de inveja-ciúme por uma pessoa, até se tornar ostracismo e perseguição da parte de todos. E sucede (quase) sempre que, para se justificarem, os perseguidores descobrem razões de culpa do perseguido, mascarando a si mesmos e aos olhos dos outros a verdadeira razão: o ciúme-inveja (no texto bíblico podemos encontrar também algumas passagens em que o narrador, com base em antigas tradições, deixa aberta a possibilidade de uma parcial corresponsabilidade de José (37,2;10)).
Também não é raro que a primeira razão da perseguição esteja nos ‘sonhos’ de quem é perseguido. O membro de um grupo que por algum motivo estava a evidenciar-se comunica – a colegas, a membros da comunidade… – um projeto de vida, um plano de reforma, uma visão mais ampla. Quem o escuta interpreta o ‘sonho’ e, conhecendo as qualidades do sonhador, acredita que tais projetos maiores que os seus podem mesmo vir a realizar-se. É então que surge a inveja-ciúme (são irmãs gémeas) e não raramente o plano para eliminar o ‘dono dos sonhos’. Este tipo de inveja especial – inveja pelos sonhos dos outros – particularmente tortuosa e perniciosa, é ativada pela presença de um talento de um membro do mesmo grupo (as invejas desenvolvem-se sempre entre pares): é a sua capacidade de sonhar coisas grandes e de poder realizá-las. Essa inveja-ciúme pelo outro nasce da não existência em nós de sonhos igualmente grandes e belos. Nos processos relacionais deste género, a presença do privilégio (veste e sonhos) é real; não é uma invenção dos invejosos; apenas é interpretada como ameaça em vez de ser vista como um bem comum. Por isso, esta inveja (sobretudo quando se desenvolve no interior de comunidades primárias) só pode ser curada pela reconciliação com o talento do outro, até senti-lo como próprio, de todos – é emblemático que antes de lançar José na cisterna os irmãos “tiraram-lhe aquela capa vistosa que trazia” (37,23).
Em dinâmicas comunitárias semelhantes, a grande tentação do sonhador é renunciar a sonhar e deixar de contar os sonhos aos amigos. Mas se não contarmos a ninguém os sonhos mais belos e vocacionais que temos, depressa chegará o dia em que não conseguiremos mais sonhar: fechamos os olhos para ver mais e nada acontece. Enquanto tivermos alguém a quem contar os nossos sonhos, ainda temos amigos (a amizade é também o ‘lugar’ onde se podem, reciprocamente, contar os sonhos maiores). José contava os seus sonhos aos irmãos porque os considerava amigos; era jovem e fiava-se deles (que irmão mais novo não confia nos irmãos mais velhos?). Trair ou perverter um sonho narrado por um amigo-irmão é o primeiro delito da amizade e da fraternidade (que então se limita a uma questão de sangue). Quando a inveja dos outros nos arranca a túnica colorida e faz morrer dentro de nós os sonhos, as comunidades iniciam um inexorável declínio moral e espiritual. E o sonhador apaga-se, fica triste, perde-se.
José não deixou de contar os seus sonhos e os seus sonhos-contados salvaram também os seus irmãos.
Todos os comentários de Luigino Bruni publicados em Avvenire estão disponíveis no menu Editoriais Avvenire