A árvore da vida / 23 – José e o milagre da reconciliação - ressurreição
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 20/07/2014
“'Sou eu. Eu sou o vosso irmão José'. 'Certamente é ele, certamente é ele!' – gritou Benjamim, sufocando quase de alegria. E precipitando-se para José, subiu os degraus e caiu de joelhos, abraçando-se nos do irmão recém-achado. Jashup, José-el, Jeosif, soluçou com a cabeça lançada para trás, para contemplar o rosto do seu irmão. 'És tu, és tu, certamente! Não morreste'”. (Thomas Mann)
Acompanhar uma vocação que se desenvolve e realiza é uma das experiências humanas mais assombrosas. É um dom especialmente precioso em períodos de carestia de ‘vozes’ e sonhos, quando mais fortes se tornam o desejo de gratuidade e a nostalgia de histórias de pura charis que só quem recebe uma vocação pode viver e fazer viver.
Qualquer vocação autêntica – seja ela artística, religiosa ou civil – é, portanto, um bem público; tanto ou mais ainda que uma fonte, uma floresta ou um oceano, porque a presença de vocações que chegam à maturidade torna a terra de todos um lugar melhor para viver, para morrer; para criar e educar crianças. A Bíblia é também um cofre onde – desde há milénios – estão guardadas muitas grandes histórias de vocações. Conservadas para nós, apenas. Para que possamos revivê-las, encarná-las, fazer com que sejam a nossa história; para assim tornarmos melhor a nossa vida e a vida de todos.
Em Canaã, ainda moço, José tivera, em sonho, o anúncio da sua vocação: viu o seu feixe direito no meio do campo e os outros onze feixes (os irmãos) prostrando-se diante dele (37,7). Tal como José, também nós agora, só passados muitos anos e muito sofrimento conseguimos interpretar verdadeiramente os sonhos da juventude. Por vezes é precisa a vida inteira e montanhas de sofrimento para decifrar os sonhos – nossos e de outros; para compreender que talentos que inicialmente pareciam até uma ameaça – de um irmão (colega, ou membro da comunidade em que vivemos …) – eram afinal a salvação para todos.
“Eu sou José. Meu pai ainda está vivo? … sou José, o vosso irmão que vocês venderam para o Egito” (45,3-5). O ponto culminante do ciclo de José concentra-se em poucos, humaníssimos e estupendos versículos. Antes deste pranto-grito José era irmão por ser filho do mesmo pai; agora volta a ser irmão porque gerou na dor-amor um novo laço de fraternidade. A fraternidade do ‘sangue e basta’ não salvou nunca ninguém; é mesmo frequente causa de injustiça, privilégio, discriminação ou violência. A primeira fraternidade natural de José morreu ao memo tempo que o cabrito com cujo sangue os irmãos mancharam a sua veste real para fazer crer a Jacob que ele morrera (37,31). Agora, depois dos anos passados no Egito, José e os seus irmãos renascem para uma nova fraternidade, ressucitada da morte da fraternidade de sangue.
No pranto de José, junto com a palavra irmão está também a palavra pai: ‘Meu pai ainda está vivo’? Fraternidade e paternidade. Ao longo de todo o ciclo de José, que é uma grande narrativa sobre a fraternidade, o pai Jacob e a mãe Raquel de modo algum estão ausentes. São uma presença constante, co-protagonistas essenciais da história, mesmo se afastados do centro da cena para deixar espaço ao desenrolar da metamorfose da fraternidade entre os filhos.
Diferentemente da fraternidade da revolução francesa, a fraternidade bíblica, não é fraternidade sem ou contra a paternidade. A paternidade-maternidade dizem história e destino comum, são raiz e corda (fides) que nos liga uns aos outros através do tempo. Diferentemente dos grandes mitos gregos sobre a paternidade (negada em Édipo, ou esperada do mar em Telémaco), a paternidade bíblica está ao serviço da fraternidade; é memória da Aliança e garantia da confirmação da Promessa. A paternidade-maternidade é também lugar de recomposição da fraternidade: Isaac e Ismael reencontram-se à cabeceira de Abraão, Esaú e Jacob à cabeceira de Isaac. O Génesis diz-nos que a reconciliação verdadeira apenas é possível no âmbito de um pacto, voltando a acreditar, juntos, na mesma promessa, num caminho comum. À sombra (tutelar) de um pai – mesmo se afastado e não intrometido – a reconciliação dá-se no Egito, longe de casa.
“...abraçou-se a Benjamim a chorar e Benjamim chorava igualmente abraçado a José. A seguir José beijou todos os seus irmãos a chorar e só depois é que os irmãos conseguiram falar com ele” (45,14-15). Quando estavam em Canaã os irmãos “nem sequer o saudavam” (37,4). Agora falam com serenidade nova e mais bela. O sinal mais eloquente de relacionamentos quebrados é o deixar de se falar. Poucas são as experiências mais feias que as vividas por colegas de trabalho ou vizinhos de casa que não se falam, não por se não conhecerem, mas porque deixaram de falar-se devido a conflitos. Desaparece a palavra, que é pão quotidiano dos nossos relacionamentos e, com ela, termina a vida boa, a alegria, e muitas vezes até a empresa acaba. Quando não se fala com os colegas, ou quando não se fala ‘serenamente’, é difícil acordar de manhã, as horas de trabalho nunca mais acabam, e por vezes chega-se a ficar doente. Os silêncios relacionais são sempre muito tristes; são tristíssimos e desumanos quando acontecem entre irmãos e irmãs, dentro da mesma casa. Então a palavra que se apaga não se limita a tirar a alegria: faz-nos ‘morrer’, retira a bênção às obras das nossas mãos, faz com que os filhos cresçam mal (o primeiro ato de amor para com um filho é esforçar-se por lhe proporcionar relações primárias recompostas). Quando se recomeça a ‘falar serenamente’ depois de anos de silêncio errado e tremendo (o que, graças a Deus, acontece – pois o mundo é amado por Ele, apesar de o ter esquecido), quase sempre as primeiras palavras são lágrimas e beijos mudos de paz (‘beijou todos os seus irmãos a chorar’). São estas as primeiras palavras que conseguimos dizer uns aos outros, principalmente quando somos nós que estamos na condição de precisar de perdão: “Mas eles nem conseguiam responder” (45,3).
Lendo bem nas entrelinhas desta reconciliação, descobre-se ainda uma nova dimensão da vocação de José, fundamental para a fraternidade nova. Até ao momento em que revela ser quem é, José tinha primeiro sonhado, depois contado os seus sonhos e, por fim, tornara-se intérprete de sonhos dos outros. Para reconstruir o relacionamento com os irmãos já não interpreta sonhos; passa a interpretar uma história, a história da fraternidade negada e reconstruída. O seu talento consiste agora em oferecer uma interpretação salvífica de factos realmente vividos. Não acusa ninguém, não exige nada, não condena; pronuncia as únicas palavras que poderiam levar à reconciliação: “Não se aflijam nem tenham remorsos por me terem vendido para aqui, porque foi Deus que me enviou à vossa frente para podermos sobreviver”. E conclui, afirmando de novo: “Não foram, portanto, vocês que me mandaram para aqui; foi Deus que me enviou” (45,5-8).
É uma obra-prima da arte da reconciliação depois de feridas profundas. A vítima – José – toma sobre si o mal que os irmãos tinham provocado, a ele e ao pai e faz a sua interpretação mais bela, a única que poderia sanar e reconciliar: ‘Não foram vocês; foi Deus’. Para curar a fraternidade traída não existem outras palavras. São precisas palavras que olhem para o passado de um modo diverso; que o amem e salvem. Para curar em profundidade uma grande traição, é imperioso descobrir uma leitura dos factos que evidencie o bem que nasceu do mal. Estas leituras (só as vítimas as podem fazer) não são nem simples nem indolores; é preciso que sejam verdadeiras e não inventadas; é necessário muito esforço-amor para descobrir uma verdade de bem mais verdadeira que a que vemos diante dos olhos. Sem tal interpretação transformante, que tem a força de ressuscitar relações mortas, a reconciliação é frágil; à primeira crise regressam a revindicação, a acusação recíproca, o sentimento de culpa; e a antiga ferida sangra de novo. ‘O teu egoísmo provocou imensas perdas à empresa, enorme sofrimento à família. Mas durante estes anos todos nós crescemos, e graças àquela dor, podemos agora recomeçar uma vida nova e ainda mais bela’. O mal que se fez é sempre mal (‘… vosso irmão, que vocês venderam para o Egito’), mas a efetiva possibilidade de recomeçar depende da interpretação dos frutos de vida que nasceram também do mal feito e suportado. Também na história dos povos os momentos mais altos no plano moral são fruto de leitura diversa de fratricídios passados que os faz ressurgir hoje na fraternidade. Já o fizemos; podemos e sabemos fazê-lo, portanto. Estas interpretações difíceis do passado são experiências coletivas, mas não acontecem sem a presença de pelo menos um “José”, de uma ou mais pessoas-vítima, concretas e grandes; capazes de palavras diversas.
A palavra cria e é eficaz; é um dos grandes dons do livro do Génesis. A história de José diz-nos algo de novo: a palavra é capaz de recriar até as nossas relações quebradas, fazê-las ressurgir dos sepulcros-poço em que a nossa maldade insiste em lançá-las. É possível curar com a palavra a nossa fraternidade ferida, doando interpretações de história que a ressuscitam. É possível uma fraternidade diferente, mais profunda e universal que a do sangue; é o dom maior que José continua a oferecer-nos. Se a Bíblia pôs no centro da história da Aliança e da Promessa uma fraternidade que morreu e ressuscitou, é porque o milagre de um fratricídio que se transforma em nova fraternidade é possível, faz parte do repertório das coisas humanas. Pode repetir-se sempre e em toda a parte; aqui e hoje também.
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