A árvore da vida / 25 – O dom do Génesis e um voto: sonhar de novo Deus
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 03/08/2014
"Assim lhes falou José e todos riram e choraram juntos e estenderam para ele as mãos e tocaram-no, e José também, estendendo as suas, os acariciou. E assim termina a linda história inventada por Deus de José e os seus irmãos.” (Thomas Mann, José e seus irmãos)
“Em que é que se ocupam?”, perguntou o faraó aos irmãos de José. “Nós somos pastores de ovelhas”, responderam (47,3). A pergunta sobre a profissão é a primeira na vida de um adulto. Quando não se sabe responder a essa primeira pergunta, quem sofre é o nosso lugar no mundo e não apenas o posto de trabalho. A profissão é a sintaxe com que se compõe o nosso discurso social.
Por isso, quando a um jovem não se oferece uma profissão (que, antes de ser talento e trabalho, é um dom: a profissão aprende-se de alguém), ficam a faltar-lhe palavras para falar de si, aos outros e a si mesmo. A grave indigência de postos de trabalho da nossa época é também consequência de uma profunda crise de profissões. Os que foram criados pela cultura artesanal, marinheira e agrícola, de profissões, da fábrica e dos escritórios, estão a contrair-se rapidamente; muitos desapareceram. E, na presente carestia de promessas e de sonhos, nós não conseguimos criar quantos bastem.
“Jacob viveu dezassete anos no Egito e chegou aos cento e quarenta e sete anos de idade” (47,28). Sentindo que a morte estava próxima, relê e recapitula a sua longa vida: “O Deus supremo apareceu-me em Luz, na terra de Canaã, e abençoou-me, dizendo: ‘Eu vou fazer com que a tua família cresça e se torne muito numerosa, …’. Quando eu voltava da Mesopotâmia, morreu a minha esposa Raquel, já na terra de Canaã … . Eu sepultei-a ali mesmo, junto ao caminho para Efrata, isto é, Belém” (48,3-7). A vocação, a voz e Raquel. A Aliança, a promessa, as lutas, os abraços, a fidelidade. Os habitantes desta história são as pessoas amadas, os lugares, Deus; todos sempre presentes, todos sempre protagonistas. Quando se tem a graça de estar consciente nos últimos preciosos momentos da vida (é uma graça autêntica), revivem em nós os rostos e os lugares dos amores e das dores, das boas escolhas que fizemos e dos encontros a que faltámos nas encruzilhadas decisivas; e não é raro que o último olhar para um rosto ou lugar seja o da plena reconciliação com a vida, com o qual se arranca a última bênção ao anjo da morte. Somos tempo e somos espaço, que no fim se dissolvem um no outro: Raquel e Belém, El Shaddày e Luz, Paola e o liceu G. Leopardi onde nos encontrámos: todos voltam a estar vivos e dizem connosco as nossas últimas-primeiras palavras.
Depois Jacob pôs as mãos na cabeça dos netos Manassés e Efraim e abençoou-os com palavras de céu (48,15-16). Chamou então os filhos e disse: “Venham ouvir, ó filhos de Jacob” (49,1-2). Pronuncia então para cada filho palavras últimas, “ao dar a cada um delas uma bênção particular” (49,28), sem esconder os erros e culpas (de Rúben, Levi e Simeão). Uma vez mais a bênção mais bela é a dada a José, como num salmo: “José é um potro selvagem, um potro junto de uma nascente; …. Os arqueiros irritam-no, atacam-no e apoquentam-no. Mas os seus arcos ficam hirtos …: bênçãos que descem dos céus, bênçãos que nascem das profundezas da terra, bênçãos dos seios e do ventre …” (49,22-26). Como última vontade pede aos filhos para ser sepultado na gruta de Macpela (49,31), que Abraão tinha comprado “como propriedade” aos hititas (49,30), com contrato formal (50,13), para dar sepultura a Sara. Quando acabou de falar aos filhos, “Jacob deitou-se de novo e expirou, indo juntar-se aos seus antepassados” (49,33). Morre no Egito, mas irá repousar na terra de Canaã.
A esplêndida morte de Jacob – nesta nossa época de inimizade com a morte, e por isso com o limite, precisamos de reler muitas vezes as belas mortes dos patriarcas para nos fazermos amar por elas - deu origem a uma nova crise na fraternidade: “Como o pai tinha morrido, os irmãos de José diziam entre si: ‘Quem sabe se José não está ressentido connosco e se vai vingar do mal que lhe fizemos?’” (50,15). Levados por este receio, fizeram chegar a José uma mensagem que continha (provavelmente) uma mentira: “O teu pai antes de morrer ordenou-nos que te disséssemos da sua parte: ‘Peço-te, por favor, que perdoes aos teus irmãos o seu crime e o seu pecado, pois eles trataram-te muito mal’” (50,16-17). Mas “ao ouvir estas palavras, José pôs-se a chorar”, e disse uma vez mais: “Pensaram em fazer-me mal e Deus permitiu, por saber que isso ia salvar a vida de muita gente”. “Não tenham medo” (50,19-21). Tal como no primeiro perdão, José usa as melhores palavras para qualquer reconciliação: “Não foram vocês; foi Deus”.
Na cura da fraternidade ferida e quando, como no caso de José e seus irmãos, o perdão não é esquecer o passado mas investir num novo relacionamento ‘ressuscitado’, não basta o perdão da vítima: é necessário que quem cometeu o delito acredite verdadeiramente no perdão recebido. Perante o primeiro perdão, os irmãos poderiam ter pensado: “Ele está a fazer isto por nós, ou pelo nosso pai?”. A morte de Jacob faz emergir a dúvida, que evolve para nova crise: mais uma mentira, novo pranto, novo perdão.
Não é raro que a morte de um dos pais provoque uma crise no relacionamento entre irmãos ou irmãs. E não apenas nem principalmente por razões de herança ou interesses. A morte do último dos pais, mesmo quando acontece em avançada idade sua e dos filhos e filhas, é sempre uma passagem decisiva no relacionamento entre irmãos ou irmãs. Regressa-se, realmente, de novo a uma situação de orfandade e experimenta-se que uma profunda raiz seca dentro de nós. O princípio de unidade da família – que era também um ‘lugar’, a casa mãe onde se reuniam, faziam festa, se reconciliavam – deixou de existir, ou existe de modo diferente; é necessário encontrar um novo e renovado. Se o relacionamento tinha anteriormente passado por feridas profundas, por vezes é necessário re-perdoar para dar a quem é perdoado o espaço e o tempo necessários para acolher o nosso perdão: “E assim José tranquilizou os seus irmãos, falando-lhes com toda a delicadeza” (50,21). O perdão não é um ato, é um processo: perdoa-se e volta-se a perdoar, duas vezes, sete, setenta vezes sete. “José morreu aos cento e dez anos de idade. O seu corpo foi embalsamado e colocado numa urna que ficou no Egito”.
E assim, após vinte e cinco semanas, termina o comentário ao livro do Génesis. A partir do próximo Domingo espera-nos o Êxodo, para seguirmos a mesma voz, a mesma promessa.
Iniciámos esta aventura da alma – dificílima e estupenda – à procura de novas palavras para a economia. Encontrámos muito mais que isso: viajando até ao ‘término da noite’ entrevimos a árvore da vida. Acordámos do sono, fomos chamados à existência no jardim da criação; maravilhados com o ser, falámos com Deus na brisa da tarde, e assistimos ao primeiro cruzar de olhares humanos, ‘olhos nos olhos’. Nos campos, fomos testemunhas do primeiro fratricídio-homicídio; chegou até nós o odor do sangue do primeiro homem-irmão assassinado. Vimos Lamec assassinar uma criança. O tempo parou, morremos também nós com todos os Abel e crianças mortos em todas as guerras do mundo e continuamos ainda hoje a morrer (foi doloroso comentar estes últimos capítulos, enquanto caíam mísseis sobre a ‘terra de Canaã’). Subimos a uma arca construída pelo único justo e fomos salvos: homens, mulheres, animais. Depois do dilúvio detivemo-nos em Babel: ali sentimos a tentação do comunitarismo; ultrapassámo-la e pusemo-nos a caminho, dispersando e salvando-nos ao longo da história. Assim chegámos a Ur dos Caldeus, onde encontrámos um arameu errante, cuja fé numa voz diversa e mais verdadeira o fez partir da terra dos deuses de madeira. Estimámo-lo e agradecemos-lhe por ter acreditado também por nós; e desejámos ser como ele.
Sorrimos por um filho que chegou na velhice; e depois fugimos, expulsos por Sara, para o deserto, juntamente com Agar e Ismael. Com Abraão e Isaac subimos ao monte Moria. Sobre esse monte, e em tantos outros lugares, perdemos e reencontrámos um filho; sobretudo, reencontrámos e escutámos de novo a primeira voz, e acreditámos de novo na sua promessa. Enamorámo-nos por Raquel junto ao poço; e com ela morremos, quando deu à luz Benomi. Atravessamos a vau uma torrente, quando regressávamos para ir ter com o irmão enganado, e ali fomos atacados, combatidos, feridos, abençoados; e com Jacob tornámo-nos Israel. Vimos o paraíso, sonhámos anjos e sonhámos Deus, o sonho dos sonhos. Por fim, com José, encontrámo-nos dentro de um poço-sepultura, de onde ressuscitámos para chegar ao Egito e nos tornarmos intérpretes de sonhos. Lá, na companhia de Thomas Mann, reaprendemos a fraternidade, compreendemos que a terra prometida é a terra de todos, descobrimos a importância dos sonhos. Antes e acima de tudo, fomos inundados, submersos, arrastados, amados por bênçãos, que foram bem mais numerosas que a muita ambiguidade e maldade que encontrámos também, sentindo-as vivas na carne. Bênçãos que, mil vezes e de mil modos, nos disseram que a última palavra sobre o mundo e sobre o homem não é a de Caim, ainda que seja a que mais se faz ouvir em toda a terra, ontem, hoje, talvez amanhã.
O Génesis deu-nos ouvidos para ouvir outras vozes, menos barulhentas mas mais verdadeiras; procurar captá-las na balbúrdia da história é a nossa primeira tarefa, se quisermos permanecer humanos, seres espirituais capazes de infinito. Mas, mais que qualquer outra coisa, deixou dentro de nós uma pergunta, que é também compromisso, grito, desejo: quando recomeçaremos a sonhar Deus?
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