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A economia da espiga suspensa

A fidelidade e o resgate / 5 – Na cultura da Bíblia a propriedade privada é sempre domínio imperfeito.

Luigino Bruni

Original italiano publicado em Avvenire em 25/04/2021

«Também eu, último a chegar, vigiei, e fiz como o que junta os bagos, depois da vindima. Com a bênção de Deus, progredi e enchi o lagar como o vindimador».

Sirácida, 33, 16-17

Rute é a respigadora. Mas o que é a respiga na Bíblia? E qual é a grande mensagem de justiça e de comunhão que continha e que contém?

«Noemi tinha um parente por parte do seu marido, Elimelec; era um homem poderoso e rico, chamado Booz» (Rute 2,1). Num cenário que, até agora, tinha sido habitado apenas por figuras femininas, chega agora um homem e aí permanecerá até ao fim. Booz é um homem de valor. Se Noemi, viúva e sem filhos, ainda tem, um parente “de respeito”, em Belém, então, está menos “vazia” do que parecia até agora. Mas este primeiro versículo conhecemo-lo nós, os leitores do livro, e Noemi. Rute não o conhece. Ela permanece ignorante. A Bíblia não nos faz entrar no seu mistério, mesmo dramático, se não respeitarmos a ordem e o ritmo que o texto quis para os seus personagens. Se, aqui, não nos tornarmos tão ignorantes quanto Rute.

Reencontramos Rute com Noemi, numa situação difícil. Depois do impulso profético do início da sua vocação, agora, trata-se de poder viver ou, pelo menos, sobreviver. Noemi parece persistir no seu estado de amargura, E, então, Rute toma, de novo, a iniciativa: «Rute, a moabita, disse a Noemi: “Por favor, deixa-me ir respigar nos campos de alguém que queira acolher-me com bondade”. E ela respondeu-lhe: “Vai sim, minha filha”» (2,2). A respigar. A palavra determinante do livro, aquela vista pelos artistas e pela muita piedade popular. Porque Rute é muitas coisas, mas é, sobretudo, a respigadora.

Era o tempo da colheita da cevada (1,22), uma colheita que chega depois de uma longa carestia (1,6). Uma mulher estrangeira, viúva e empobrecida, num tempo de colheita podia sobreviver respigando atrás dos ceifeiros. Os homens eram os primeiros a passar, apanhavam as espigas com a mão esquerda, com a foice, na direita, cortavam o ‘punhado’ (a quantidade de espigas contidas numa mão) e deixavam no chão as espigas cortadas. Depois, as mulheres recolhiam aquelas espigas, amarravam-nas e faziam os feixes. Por fim, chegavam as respigadoras, tarefa essencialmente feminina, para juntar-respigar o que tinha ficado no chão e o que estava nas beiras. As respigadoras eram, portanto, mulheres que iam atrás de outras mulheres que seguiam os ceifeiros. A sua recolha era residual, de terceira ordem, que dependia da ação de quem as precedia. Não recolher nas beiras e deixar algumas espigas soltas no terreno era ação intencional. Aquelas espigas não ficavam ali por distração ou por falta de cuidado. Naquele mundo, o trigo era precioso, questão de vida ou de morte, e nem uma espiga era deixada por erro. Aquele trigo ficava porque devia ficar; era um resto desejado, procurado, protegido pela Lei e esperado pelos pobres e pela comunidade, que o defendia de abusos. Era um “trigo suspenso”, não um trigo esquecido.

No povo de Israel, a colheita era regulada pela Lei de Moisés: «Quando procederdes à ceifa das vossas terras, não ceifareis as espigas até à extremidade do campo, e não apanhareis as espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro» (Lv 19,9-10). E, no Deuteronómio: «Quando varejares as tuas oliveiras, não voltes a colher o resto que ficou nos ramos; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva…» (24,20). Portanto, a respiga não dizia respeito apenas ao trigo, mas aos principais produtos do campo, uma verdadeira e própria instituição social de redistribuição da riqueza. 
Encontramos práticas semelhantes à respiga na Bíblia noutras civilizações antigas. As respigadoras são representadas na arte funerária do antigo Egipto (Joyce Tyldesley, Daughters of Isis: Women of Ancient Egypt) e, portanto, não é de excluir que os hebreus tenham aprendido no Egipto a prática da respiga. Mas, o que noutras civilizações era práxis marginal e residual, em Israel torna-se parte integrante da Lei de Moisés. E, por isso, para ser compreendida, deve ser lida juntamente com o Shabbat, o Jubileu, a proibição de usura, que fazem, da economia bíblica, algo de diferente e, em boa parte, único: «Em verdade, não deve haver pobres entre vós» (Dt 15, 4).

É isto a respiga na Bíblia. Uma autêntica profecia económica, expressão do grande princípio na base de toda a Lei bíblica: a terra é de YHWH, vós sois apenas usufruidores segundos de uma riqueza que é dom antes de ser o fruto do vosso esforço e dos vossos méritos. E, se a terra e os seus frutos são, primeiro, dom, então distribuir uma parte não é mais do que a sua consequência lógica e justa. A respiga é uma instituição de justiça económica, não de filantropia. As espigas deixadas soltas nas beiras dos campos e as que os ceifeiros e as mulheres deixam cair no chão não são propriedade privada de que os proprietários da terra se privam para os pobres; não: aquelas espigas não recolhidas são a parte do bem comum que, por direito, pertence aos pobres. É a recordação operante do dom gratuito do maná no deserto e da sua lei – o maná nunca saiu do horizonte bíblico e evangélico. Havia ainda o eco desta profecia bíblica por trás das contas em nome do “Senhor Deus”, das companhias toscanas do séc. XIV, onde Deus recebia os seus dividendos através dos pobres. Os campos de Belém eram, então, uma espécie de bens comuns; sobre eles havia um direito também para os não proprietários. Os cantos dos campos e as espigas de sobrantes pertenciam a toda a comunidade. Os não proprietários também têm direitos sobre os bens da terra prometida. Para a Bíblia, toda a terra é terra prometida e toda a cidade é Belém, a “casa do pão”, a casa do pão para todos.

Uma certa presença da respiga resistiu na Europa até ao séc. XIX (sobretudo na França e na Inglaterra). Encontram-se vestígios dela na Sardenha, ainda no séc. XX (Alfonso Peiroleri, Le condizioni del salariato agricolo in provincia di Cagliari, 1905). Porém, é mais fácil encontrar vestígios dos seus abusos. No início do séc. XVI, nalgumas terras da Calábria (San Martino), os senhores feudais (os Alimena) reivindicavam direitos sobre parte das espigas recolhidas pelas respigadoras; um abuso parecido existia no feudo de Fragagnano (Taranto). É interessante uma ordem do papa Bento XIV, de 1742: «Um grupo numeroso de pessoas fez-nos ouvir, entre lamentos e choros, queixas contra os donos dos campos, que já não querem respeitar o antigo e piedoso costume de dar liberdade aos pobres para respigar as espigas deixadas para trás, depois da ceifa» (Insegnamenti Pontifici, vol. 13. Edizioni Paoline). São estes os últimos resíduos de um humanismo, ainda vivo na Idade Média, onde a propriedade privada sobre os bens era domínio imperfeito porque partilhado a muitos níveis e entre muitos atores.

Nos carismas religiosos, esta consciência era vivíssima e operante: «O Pai Francisco ordena que o jardineiro deixe por cultivar as beiras à volta da horta para que, a seu tempo, o verde da erva e o esplendor das flores cantem como é belo o Pai de toda a criação. Também quer que, na horta, um canteiro seja reservado para ervas aromáticas e que produzam flores, para que lembrem, a quem as observa, a memória da suavidade eterna» (Tommaso da Celano, Vita Seconda, 750). Aqui, num pormenor, esconde-se todo o Cântico de S. Francisco: a terra não é nossa, nem sequer aquele pedaço de terra da horta do convento cujos frutos e flores não são apenas e todos para nós. Estão ali também para dizer, com a sua presença livre e selvagem, que são livres, que, portanto, não vieram ao mundo apenas para nossa utilidade.

A Bíblia e a economia de Rute recordam-nos também algo de extrema importância: Que os bens se tornam bênção para nós apenas se somos capazes de não os usar só para nós. Porque a economia da “coisa” apenas para nós é a economia de Mazzarò, do conto de Verga: «Uma só coisa lhe doía: que começasse a envelhecer e ter de deixar a terra onde ela estava… Por isso, quando lhe disseram que era tempo de deixar as suas coisas, para pensar na alma, saiu para o pátio como um doido, cambaleando, e, à paulada, massacrava os seus patos e os seus perus e gritava: "Coisas minhas, vinde comigo!"». O capitalismo, sem a grande lei da respiga, torna-se a economia de Mazzarò – estamos a ter uma imagem bem clara disso no que respeita ao planeta.

As recordações literárias (La Spigolatrice di Sapri, de Luigi Mercantini) e pictóricas (As respigadoras de Jean-François Millet) de meados do século XIX, não ajudam a compreender o que era a profecia económica da respiga. Já entrámos numa época dominada pela absolutização do direito sagrado da propriedade privada, que levará ao desaparecimento da respiga que hoje, no código penal, é considerado crime.
No entanto, do coração do nosso capitalismo e do seu culto total do individuo e dos seus direitos absolutos sobre as coisas, estão a surgir práticas que se assemelham à respiga. Pessoas e associações que – como novas Rutes – depois de os “ceifeiros” e as mulheres terem passado, vão aos mercados, aos supermercados, às padarias, para recolher tudo quanto sobra e, assim, poder matar a fome ao pobre. Também aqui há quem os vê e pensa que a economia que verdadeiramente conta é uma outra, a das grandes propriedades, do proveito, do lucro. E, pelo contrário, naqueles “bancos” diferentes existe a mesma profecia da economia de Rute e de Francisco.

Dois últimos pormenores. Inerente à lei da respiga está a proibição de se virar, de voltar atrás para recolher, numa segunda volta, o que ficou depois da primeira passagem - «…não voltarás atrás, a rebuscar; …não voltes a colher o resto que ficou nos ramos». A economia bíblica é a economia da primeira passagem porque só a primeira é boa. A segunda passagem não é para nós, é a passagem dos outros que têm direitos sobre os “meus” bens. Voltar atrás nunca é bom numa vida de seguimento. Por fim, é muito sugestivo o ir atrás, de Rute. Na Bíblia, «ir atrás é coisa boa» (Jean P. Sonnet). Toda a história da salvação é a história do arameu errante que vai atrás de uma voz. O homem bíblico é o que vem atrás, é quem vem depois. Porque quem vem primeiro é a voz, quem vem primeiro é a comunidade, é o bem comum. E cada leitor da Bíblia chega depois: «Passa entre as linhas como entre as vinhas já vindimadas, que não nos pertencem, mas às quais somos admitidos porque, como últimos, somos os mais pobres» (Erri de Lucca, Ora prima). Mas aquelas últimas espigas sobreviventes não estão ali por acaso, esquecidas. Estão ali, suspensas, fielmente à espera que chegue a nossa segunda passagem. A passagem essencial para nos alimentar, para saciar a fome. Para uma libertação: «Ela foi e entrou num campo, respigando atrás dos ceifeiros. Aconteceu que aquele campo era propriedade de Booz, parente de Elimelec» (2,3).

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