À escuta da vida / 29 – O profeta é mestre da luz porque conhece a noite
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 08/01/2017
«A maré humana, quebrando-se aos pés da torre, continuamente lambida pela sua miséria, continua a repetir a sua pergunta: shomèr ma-millàilah? ‘Quanto falta para o dia?’. O tom do oráculo é desconcertante pela sua inaudita cortesia: ‘se vos agrada perguntar, perguntai, voltai…’. Não importa saber. O que importa, o que faz viver, é que não percamos a angélica trepidação, a necessidade, a vontade de saber em que ponto vai ou quanto falta à noite ou o que significa a noite. O pior dos infortúnios é que acabem o vir e o perguntar».
Guido Ceronetti, "Il libro del profeta Isaia"
Nenhuma época conheceu uma produção e uma multiplicação de palavras como a nossa. As culturas antigas, rurais e analfabetas, também porque não sabiam escrever nem ler, porque conheciam poucas palavras, intuíam que a palavra, as palavras, continham em si um misterioso poder, respeitavam-no e temiam-no. Não sabiam nem ler nem escrever, mas sabiam falar. Não sabiam escrever poesias, mas sabiam-nas contar, sabiam-nas viver. O nosso tempo, porque inundado pelas palavras, perdeu o sentido da palavra, não tem instrumentos para reconhecer os profetas e confunde-os com os criadores e vendedores de tagarelices. Para reconhecer e compreender os profetas – e só Deus sabe quanta necessidade temos deles – deveremos simplesmente reaprender a falar.
A conclusão do livro de Isaías é enorme, como todo o livro. Voltam as promessas que entrelaçam todo o rolo, as suas consolações, a sua imensa esperança: “Olhai, Eu vou criar um novo céu e uma nova terra; o passado não será mais lembrado e não voltará mais à memória … Não se ouvirão nela choros nem lamentos. Não haverá adulto que não chegue à velhice, pois será ainda novo aquele que morrer aos cem anos” (Isaías 65, 17-20). A Bíblia é um contínuo cântico à vida. A terra é o lugar da bênção, é aqui onde se encontra Deus, onde se fala. Para o homem bíblico, para os profetas, também não há maior promessa que a de uma vida longa, de um tempo em que se viverá mais longamente. Hoje, atingimos os cem anos mas, faltando-nos uma cultura da vida, já não conseguimos ler uma longa velhice como bênção. Voltar aos profetas é um recurso essencial para reaprender a viver e, assim, a envelhecer, a morrer.
Numa cultura da vida, não pode faltar a bênção do trabalho nem a vinha: “Construirão casas e habitarão nelas, plantarão vinhas e comerão o seu fruto… os meus eleitos usufruirão do trabalho das suas mãos. Não trabalharão mais em vão” (65, 21-23). A terra prometida é também terra do trabalho como bênção, onde se ‘cansa’, mas não se ‘cansa em vão’. Todo o trabalho é canseira, mas nem toda a canseira do trabalho é boa. Bênção é poder trabalhar; bênção é não trabalhar em vão.
Volta o anúncio de uma nova harmonia na criação: “O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o leão e o boi comerão palha, e a serpente comerá terra. Não haverá mais o mal nem a destruição” (65, 25). Regressam os meninos, o primeiro sinal de qualquer esperança no tempo da desolação e da espera: “Não haverá ali criança que morra de tenra idade” (65, 20). Volta a salvação para todos: ao profeta, não basta a de um só povo: “Eu virei para reunir os povos de todas as línguas” (66, 19).
O livro de Isaías atravessa muitos séculos da história do povo de Israel, alguns muito negros e dolorosos. A força e a beleza destes últimos capítulos está em repetir as antigas promessas depois do exílio, da destruição do templo, depois da desilusão do regresso do exílio. É importante o exercício desta esperança no tempo da alegria; ainda muito mais importante é exercitar a mesma esperança nos exílios e no tempo da desilusão. É a mesma diferença que há entre a esperança da juventude e a da vida adulta, quando conseguimos acreditar, a dizer, a dizer a nós mesmos a fé numa nova terra enquanto nos encontramos naquela que devia ser a terra da primeira promessa e que um dia descobrimos ser simplesmente a terra de todos. Reencontrar, no Terceiro Isaías as mesmas imagens e as mesmas esperanças do Primeiro e do Segundo, é um grande dom para quem quer continuar a esperar e a acreditar na primeira vocação e no primeiro amor com a mesma fé do início, quando tudo era possível. É uma grande mensagem de vida que pode curar o natural cinismo e a desilusão que acompanham toda a vida boa adulta, para continuar a acreditar num filho, também como velhos, para plantar sementes de novas árvores, sabendo que não seremos nós a ver-lhe as folhas. Que poderá curar a nossa Europa envelhecida, desiludida, amedrontada pela sua escuridão.
Quando, numa comunidade, num povo, numa civilização, em cada um de nós, se embacia a profecia, a juventude é saudade, o envelhecimento é maldição e a vida bela adulta nunca chega. A profecia mantém a verdadeira experiência da juventude por toda a vida, porque a transforma numa experiência da alma. A terra nova não é a terra de ontem. Também não é a terra de amanhã. É, simplesmente, a nossa terra, a única que temos agora, aqui: “Porque, assim como os novos céus e a nova terra, que vou criar, subsistirão diante de mim, assim também subsistirá a vossa posteridade e o vosso nome” (66, 22). Só o presente pode durar para sempre. A Bíblia e os profetas continuam a repetir-nos que o maior pecado é o de renunciar a viver, encantados pelo passado ou enganados pelo futuro. Todo o céu e toda a terra se concentram neste nosso presente pobre, mas habitado, profundo, infinito. É esta a ‘vida eterna’ que nos entrega a profecia bíblica.
Chegámos ao último episódio deste comentário ao livro de Isaías, na escuta da vida que Isaías nos revelou, que nos fez ver dentro de nós e à nossa volta. Sempre que cheguei ao fim do comentário de um livro da Bíblia – Génesis, Êxodo, Job, Qohélet e, agora, Isaías – ao fechar a última página, experimentava uma verdadeira saudade, ao pensar o domingo seguinte sem a companhia dos personagens daquele livro que, episódio após episódio, se tornaram personagens vivos da minha alma. Também agora, me parece impossível que, na próxima semana, já não estarei ao lado de Isaías, a lê-lo, a ler os seus comentadores, a fazer-me ensinar e alimentar-me da sua sabedoria. Estes seis meses passados com Isaías foram maravilhosos. As descobertas feitas, do primeiro ao último capítulo, foram uma mais bonita que a outra e, não raramente, me deixaram sem respiração.
E concluo com uma última ‘surpresa’, que me chegou durante a festa da Epifania.
Isaías é o profeta da luz e da escuridão, juntas. Poucas páginas da Bíblia são tão luminosas e esplêndidas como a ‘grande luz’ anunciada por Isaías. O cântico da Sentinela, o shomèr mamillàilah, talvez o melhor de todos os cânticos, é um diálogo noturno, e é um cântico de luz maravilhosa. Como na vida, onde a escuridão e a luz estão entrelaçados entre si e, talvez um dia, compreenderemos que são a mesma coisa. Procuramos a luz durante toda a vida, sobretudo se um dia a vimos com toda a sua luminosidade, quando nos chamou. Depois, um outro dia, damo-nos conta que a escuridão que, entretanto, chegara e que tinha escurecido o primeiro sol, não era a negação da luz: era apenas uma outra luz diferente, menos luminosa mas mais verdadeira. Isaías é mestre da luz porque é verdadeiro conhecedor da noite. A sentinela é, entre as muitas imagens que o livro de Isaías nos deu para descrever a vocação profética, a que mais diz da natureza intima, o segredo da vida dos profetas: são anunciadores da aurora, no diálogo com os viajantes, na noite. Estão na própria noite, de noite, mas, por vocação, estão seguros da aurora. Não sabem quando chegará; apenas sabem que chegará, e dizem-no-lo, gritam-no-lo. Quando faltam os profetas, vive-se numa grande carestia de anúncios da aurora. E a noite sem esperança da Aurora, é noite infinita.
É típico da infância contrapor a escuridão à luz. Desde pequeninos, uma é inimiga da outra. A luz é boa, bonita, alegre; a escuridão é feia, medrosa, má. Depois, cresce-se e aprendem-se os valores da noite, vive-se, trabalha-se, ama-se de dia e de noite. Compreendemos que a noite é também o tempo do sonho, e aprendemos a sonhar também de dia. Mas, enquanto na vida natural e social todos sabemos que não é possível viver sem a alternância da noite e do dia, sem descobrir a luz no escuro e o escuro na luz, na vida espiritual permanecemos na infância durante demasiado tempo. Continuamos, às vezes durante toda a vida, a amar a luz e a odiar a escuridão, a não conhecer o trabalho, o amor, os sonhos da noite. E, assim, nunca nos tornamos adultos, presos entre a recordação da luz de ontem e o desejo da de amanhã, perdendo a única luz boa que nos é dada: a luminosa e escura do presente.
Estas coisas nunca as tinha escrito antes de iniciar a estudar e a comentar Isaías. Nunca as tinha dito porque não as sabia. Como não sabia a quase totalidade das palavras com as quais comentei Isaías e os outros livros bíblicos. A característica mais extraordinária da profecia bíblica é a sua “generatividade” : lendo-a e estudando-a é-se gerado para uma nova compreensão do presente, da história, da sociedade, da economia, das religiões, da vida – a dos outros e a própria. A Bíblia é um enormíssimo bem comum, um dom gratuito que apenas espera ser ‘visto’.
E, agora, a última palavra, também hoje, não pode deixar de ser: obrigado. Ao imenso Isaías, ao seu Deus, que é o Deus de todos. A Avvenire que, na pessoa do seu Diretor, Marco Tarquinio, continua a dar-me a confiança necessária para poder gerar novas palavras livres. Aos leitores que me acompanharam, que me escreveram muitas cartas bonitas, que me encorajaram, que me corrigiram. Aos muitos biblistas, poetas, escritores, artistas, que me deram ideias.
Depois de uma semana de pausa, retomarei, a 22 de Janeiro, a minha ‘página’ dominical, com uma nova série de reflexões. Deixarei, por agora, o trabalho sobre a Bíblia mas, se tiver força, conto retomar dentro de alguns meses. Para continuar a procurar novas palavras. Para continuar a aprender a falar. Para continuar o diálogo, na noite, na luz.
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