Outros anjos sobre a mesma gruta

À escuta da vida / 27 – A espera é a condição normal da vida boa

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 24/12/2016

Notte stellata Corea rid“Se nós consentirmos, Deus deposita em nós uma pequena semente e vai-se embora. A partir daquele momento, Deus não tem mais nada a fazer, e nós também não, a não ser esperar. Devemos apenas não lamentar o consentimento que demos, o sim nupcial. Não é tão fácil como parece, porque o crescimento da semente, em nós, é doloroso”

Simone Weil, "Attesa di Dio"  [Espera de Deus]

A espera é a condição normal da vida boa. Todos os anos, revivemos o Advento, porque embora sabendo que aquele menino já veio, sabemos também que deve regressar. O povo de Israel acreditava e sabia que Abraão tinha encontrado o Senhor, que tinha aparecido aos patriarcas, a Agar. Moisés falava com ele cara a cara, e todos os profetas tinham conhecido a voz, visto o céu e os anjos. Todavia, continuavam a esperar o Emanuel, o Deus connosco, que já tinha vindo e que devia voltar.

Memória e espera estão ligadas ente si; uma dá sentido e reforça a outra: é o futuro que mantem vivo o passado, é o passado que diz que a espera pode não ser vã. Se já não tivesse vindo, não poderia voltar. E, se um dia, não voltasse na nossa noite, a recordação da espera não bastaria para viver, a promessa apagar-se-ia. O passado sem futuro torna-se nostalgia melancólica e o futuro sem passado não sabe escrever uma história de salvação. A terra que vê o menino na gruta é a mesma terra que, pouco depois, já o não vê, a mesma terra sobre a qual continuamos ainda a caminhar, na espera da sua vinda. Sem a promessa de uma outra aurora, aquela noite santa torna-se muito distante e nublosa. A luz tem de voltar porque a noite ainda não acabou.

«Levanta-te e resplandece, Jerusalém, que está a chegar a tua luz! A glória do Senhor amanhece sobre ti! Olha: as trevas cobrem a terra, e a escuridão, os povos, mas sobre ti amanhecerá o Senhor. A sua glória vai aparecer sobre ti» (Isaías 60, 1-2). Levanta-te, “surge”. Na treva, em toda a treva, é possível erguer-se se há alguém que nos chama e nos convida a levantar. O povo, regressado do exílio, numa Jerusalém em ruinas, com o templo destruído, ocupada por outros povos com outros deuses, tem necessidade da voz forte do profeta para poder erguer a cabeça, para surgir e ressurgir. Mas o terceiro Isaías sabe que não conseguimos surgir das nossas próprias ruinas se, antes, não levantamos os olhos para olhar e ver um futuro diferente e melhor: «Levanta os olhos e vê à tua volta: todos esses se reuniram para vir ao teu encontro. Os teus filhos chegam de longe, e as tuas filhas são transportadas nos braços» (60, 4). A força da profecia está em nos fazer ver o “ainda não”: com os olhos dos profetas conseguimos verdadeiramente olhar e ver a salvação no meio da desolação. Levanta-te e vê, vê e levanta-te: são estes dois verbos da esperança e de qualquer vida que quer recomeçar. E também quando tivermos de levantar os olhos e surgir, pela última vez, conseguiremos fazê-lo se ainda formos capazes de ver e esperar: «Voltarei talvez a ver a mamã, o papá, Sílvia; talvez veja Deus». A fé está em ter vivo este “talvez” até ao último momento, é o grão de mostarda que nos basta para nos erguermos e surgir.

Esperança é ver e surgir, e é reconstruir: «As velhas ruínas serão restauradas, levantarão os antigos escombros, restaurarão as cidades destruídas e os escombros de muitas gerações» (61, 4). Só quem viveu em cidades destruídas – nas destruições dos terramotos e das guerras ou as espirituais dos lutos, dos infortúnios, das longas doenças – pode compreender toda a força desta imagem profética. Para poder erguer-se e voltar a esperar quando a cidade e a vida ainda são um monte de escombros, temos de conseguir imaginar-nos, nós mesmo e os nossos concidadãos, no ato de reconstrução, ver-nos já, enquanto trabalhamos juntos para reedificar e restaurar. Começamos a erguer um país e uma vida destruídos se, um dia, conseguimos ver, com os olhos da alma, as imagens de nós mesmos na obra da reconstrução. Antes, temos de o ver – pelo menos sonhá-lo – e só depois podemos começar a reconstruir. E, no dia em que agarramos na mão o primeiro tijolo, a esperança começou a gerar o princípio da salvação. Nada exprime melhor esperança que o início de uma obra. O trabalho de quem reconstrói uma casa, uma escola, uma igreja, quando estamos todos petrificados pela dor, pelo medo, pela desilusão, é, verdadeiramente, participação e continuação da obra criadora do mundo. Enquanto recolhemos as pedras e as recolocamos uma a uma, estamos a repetir: “faça-se a luz”, haja vida, haja o Adão que formamos da terra com as nossas mãos.

A maior pobreza nasce da falta de promessas. É a estes pobres, a esta pobreza, que atravessa todas as categorias e condições sociais, que o profeta anuncia o seu evangelho: «O espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros» (61, 1). São palavras de uma beleza e de um poder extraordinário, que os profetas continuam a repetir-nos, há milénios, sem se cansar perante a continuação das pobrezas, das escravidões, da dor. Não se calam, porque não se podem calar: «Por amor de Sião, não me calarei, por amor de Jerusalém, não descansarei, até que apareça a aurora da sua justiça, e a sua salvação brilhe como uma chama» (62, 1). É bonito este “não posso” dos profetas, que nos repete a natureza profunda de toda a verdadeira vocação profética: «Sobre as tuas muralhas, ó Jerusalém, Eu pus sentinelas, que nem de dia nem de noite deixarão de repetir: “Vós, os que tudo recordais ao Senhor, não repouseis! Não o deixeis descansar”» (62, 6-7). O primeiro Isaías já tinha usado (no cap. 21) a imagem da sentinela, no seu maravilhoso cântico «quanto falta para o dia?». Ali, a sentinela era a imagem do profeta como homem do incessante diálogo noturno com os viajantes. Na espera do dia, o profeta tornava-se amigo solidário dos homens que passam por baixo da torre de vigia e lhe perguntam «quanto falta da noite». Agora, o terceiro Isaías, herdeiro e continuador do primeiro (e do segundo) Isaías, revela-nos, aqui, uma outra dimensão do profeta sentinela. O profeta é também quem, por encargo e destino, deve acordar Deus para lhe recordar a dor do mundo. Sabe ter de realizar esta missão sem repouso, dia e noite, durante toda vida e, assim, não “dar repouso” a Deus, até ao dia em que acordará e se recordará da sua promessa.

O profeta é chamado por Deus para falar ao povo e ao mundo em seu nome. Mas, no desenvolvimento da sua missão, compreende cada vez melhor que enquanto fala de Deus ao povo, deve também aprender a falar a Deus do povo. Todo o intermediário e todo o bom mediador sabe isto e Moisés é a imagem mais forte e verdadeira desta dupla direção da “profissão” do profeta. Mas – e está aqui o drama da profecia – enquanto para falar em nome de Deus é a sua voz a guiá-lo, o profeta não tem dentro também a voz do povo que lhe fala e lhe grita. E, assim, frequentemente, cala, enquanto não aprende que a voz do povo é o seu grito de dor e compreende que para falar a Deus do povo deve apenas gritar juntamente ao seu povo. A verdade e o bom amadurecimento da vocação do profeta revelam-se em plenitude quando, um dia, o profeta sente que deve deixar o “templo” e descer à “praça”, porque é ali que aprende a escutar a voz-grito do povo. É aqui que o profeta se torna o servo sofredor, que incarna a dor do povo e dos pobres, até ao martírio, até à cruz. Aqui, já não sabe dizer ao povo a palavra de Deus, é “ovelha muda”, porque se tornou, na sua carne, palavra do homem dirigida a Deus, incarnação da palavra humana para a fazer entrar no céu. Natal é a grande celebração da palavra de Deus feito homem: as testemunhas daquele acontecimento não teriam compreendido o que estava a acontecer naquela noite santa se, nos profetas, a palavra-grito dos homens não se tivesse tornado palavra de Deus.

Mas o terceiro Isaías diz-nos ainda algo mais. O profeta é a primeira sentinela, mas não é a única nesta missão. Ele coloca a seu lado outras sentinelas sobre as muralhas, para que continuem, com ele, a cansar Deus. São os discípulos do profeta e todos aqueles que continuam, no tempo, a sua missão. São os muitos homens e mulheres, ontem e hoje, que, solidários com a própria gente, continuam a fazer perguntas a Deus, sem se cansarem, a gritar com o seu povo. São os muitos carismas, laicais e religiosos, que nunca deixaram de falar de Deus aos homens e, sobretudo, de falar dos homens a Deus, até o cansar. A profecia não morre enquanto houver alguém de vigia sobre as muralhas das nossas cidades que grita e dá voz a quem já não tem voz ou nunca a teve, sem “jamais se calar”. Que, enquanto nos anuncia a salvação, grita a dor de quem ainda não foi salvo e espera. E fazem-no por vocação, como aquele antigo profeta de quem são discípulos, mesmo que o não saibam.

Mas, desde há muito tempo são poucos, demasiado poucos, os profetas que ainda sabem falar da promessa de Deus. São, porém, muitos, muitíssimos, os que sabem gritar pela malvadez dos homens e das mulheres. Muitas vezes, gritam para um céu que pensam vazio – porque nunca encontraram Deus, porque não o conhecem, já o não reconhecem ou porque esqueceram a sua voz. Mas continuam, por vocação, a gritar pela nossa dor, anjos diferentes, mas verdadeiros, sobre as grutas das nossas noites. Não o sabem, mas também eles entram no presépio e, juntamente aos pastores, aos cordeiros, aos anjos, acompanham esta noite e esperam a aurora, para a acordar. Bom Natal.

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