À escuta da vida / 13 – No filho, e em cada filho, a vitória sobre a morte
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 18/09/2016
“Não existe profecia que não seja apocalíptica, a começar pelo livro de Isaías. Os oráculos dos profetas são transbordantes de futuro e de um futuro que é, inseparavelmente, apocalíptico e messiânico. Se a profecia aparece quando o povo está no fundo do abismo, é porque não há criação sem caos”
Sergio Quinzio, 'Un commento della Bibbia'
Os profetas nunca são meigos com o dinheiro. Conhecemos bem o seu fascínio e a sua capacidade de seduzir o coração do homem, porque se apresenta como ídolo que promete saciar a nossa sede de segurança e a nossa necessidade de salvação e que, como todos os ídolos, pede-nos tudo em troca. Também Isaías, no fim dos seus oráculos sobre as nações, antes de nos introduzir no seu Apocalipse-revelação, apresenta-nos palavras admiráveis acerca do dinheiro. A destruição de Tiro, imagem do poder comercial fenício, é descrita com a metáfora da prostituta, já não jovem, que gira nas praças à procura de novos clientes: «Pega na cítara e percorre a cidade, ó prostituta esquecida; toca com perfeição, e canta sem parar, para que se lembrem de ti» (Isaías 23, 16).
O comércio é uma troca mercenária, o lucro um ganho torpe. Mas também ao dinheiro e aos seus comerciantes fenícios é indicado um caminho de conversão: “Mas os seus ganhos e lucros serão consagrados ao Senhor, em vez de serem guardados e entesourados. O lucro do seu comércio será para aqueles que habitam na presença do Senhor, para que comam e se saciem com decência” (23, 18). O ganho acumulado é maldição; o dinheiro usado para ‘se alimentar e se vestir com decência’ é ‘consagrado ao Senhor’. Eram dinheiro as trinta moedas; eram dinheiro as duas moedas que o samaritano usou para associar o estalajadeiro à sua proximidade. O ouro que os hebreus levaram consigo, ao fugirem do Egipto, foi usado, no deserto, para a construção do tabernáculo da arca e para forjar o bezerro de ouro. O mesmo ouro, as mesmas mãos, destinos opostos. A nossa civilização, primeiro desaprendeu a distinguir os bezerros de ouro dos tabernáculos, depois fundiu os tabernáculos para forjar novos ídolos e, por fim, decretou a ‘morte de Deus’, depois de o ter transformado num inútil ídolo brilhante, cada vez mais distante da Bíblia e cada vez parecido aos cultos de Baal. Os profetas são um dom imenso porque chamam os ídolos pelo nome e os distinguem da arca da aliança e porque sabem permanecer, sofrendo, diante das nossas forjas, onde continuam a entrar os últimos tabernáculos e a sair quantidades industriais de bezerros de ouro.
Os capítulos do chamado ‘Apocalipse de Isaías’ (24-27) ajudam-nos a entrar dentro duma nova dimensão da vocação profética e de qualquer vocação autêntica. Descobrimos que também Isaías tem o seu ‘segredo’ e a sua ‘revelação’ (apocalipse), um segredo que revela a sua missão e o seu destino: “É o meu segredo, é o meu segredo Ai de mim!” (Isaías 24, 16). Nunca saberemos o que aquele segredo significava verdadeiramente, por causa das corrupções do tempo e (talvez) dos copistas e glosadores. Mas alguma coisa podemos – devemos – intuir e tentar dizer. O que sabemos é que o segredo de Isaías não tem nada a ver com os segredos misteriosos de uma determinada apocalíptica (posterior a ele), com os números e cartas misteriosas que sempre povoaram as religiões nos momentos de decadência espiritual – e que, também hoje, conhece um grande reavivamento. Podemos pensar que o segredo de Isaías é a sua vocação. É a consciência de ser habitado por uma voz que o faz ver realidades que lhe causam muita dor: “Ai de mim! Os traidores atraiçoam, os traidores agem com perfídia. O terror, a cova e o laço é o que vos espera, habitantes da terra!” (24, 16-17). Os seus olhos proféticos mostram-lhe o mundo como um grande espetáculo de traição e de falsidade. Vê - sente - que a traição é a ordinária condição dos homens debaixo do sol. Todos traímos, pelo menos uma vez. Traímos os amigos porque não somos suficientemente generosos, os filhos quando os transformamos nos nossos ídolos e ‘penates’ domésticos, o cônjuge, pelo menos no ‘coração’. Colegas e responsáveis quando deixamos a alma fora do escritório e entramos com o nu contrato de trabalho. Traímos os nossos eleitores quando o nosso interesse particular usa palavras de Bem comum apenas para os seduzir. E, sobretudo, traímo-nos a nós mesmos, quando temos o dom de reconhecer a voz verdadeira e a não escutamos. Todos traímos, quase sempre, pelo menos uma vez. O nosso coração faz-nos esquecer as traições feitas e recebidas; o nosso coração não resistiria. Mas os profetas veem-nas, sofrem por nós, não as podem esquecer porque se as esquecessem deixariam de nos amar, tirar-nos-iam a possibilidade de as redimir. E continuam a ver as nossas devastações, infidelidades, traições. Mas permanecem ‘sentinelas’ e habitantes da noite: as suas pupilas mais dilatadas fazem-nos ver melhor as formas das sombras noturnas e anunciar a aurora que ainda não existe. Vê as dores, os erros e os pecados da sua gente e sabe que não pode fazer nada ou fazer pouco, muito pouco. ‘Ai de mim’ ou então: ‘pobre de mim’. Os profetas receberam mais dons que os não-profetas, mas, se são fiéis, sofrem mais. Veem mais e de modo diferente e, por isso, sofrem mais e de modo diferente. Este ‘sofrimento dos olhos impotentes’ é a parte essencial da vocação dos profetas e dos carismas (que continuam, na história, a função profética). É o seu pão quotidiano, juntamente às típicas e maravilhosas alegrias que são a outra face destas vocações – não se consolam com o belo que também veem, porque é mais forte a dor pela não-beleza que mais veem. Sofrimento de ver muito e pouco poder fazer, de sentir quase um poder infinito no olhar, que se torna infinita impotência para aliviar a pena do mundo. Não trai a própria vocação o profeta que aprende a habitar esta forma de sofrimento, que sabe estar nesta impotência e não decide, um dia, arrancar os olhos da alma pelo demasiado grande. Muitos profetas perdem-se pelo caminho, ou tornam-se falsos profetas (que não sofrem porque não veem), porque não conseguem estar neste típico sofrimento, que dura toda a vida e aumenta com os anos – é difícil responder a uma vocação quando jovem, dificílimo é permanecer-lhe fiel quando velhos.
Para exprimir esta dimensão do seu ‘segredo’, o profeta usa a imagem das dores de parto de uma mulher que termina sem a alegria da criança: “Como a mulher grávida, prestes a dar à luz, se torce e grita nas suas dores, assim éramos nós na tua presença, ó IHWH. Nós concebemos, sofremos dores de parto, e o que demos à luz foi vento” (26, 17-18). Parir vento, gerar vanitas. Parto sem filho: o que supera esta dor? Isaías, um homem, para dar palavras a esta dimensão da sua vocação, apenas pode recorrer à mais íntima experiência feminina, para ele mistério que o dom da profecia lhe permite, pelo menos, intuir, tomando as carnes da sua palavra. Isaías sabe não “ter trazido a salvação à terra”, “não ter gerado um novo povo”, que a força quase infinita da sua palavra não consegue vencer a morte (“Os mortos não vivem, as sombras que não voltam a levantar-se”: 26, 14). E é nesta altura que a sua palavra se sublima, que começa o canto da esperança messiânica, que sai do seu dia e entra ‘naquele dia’: “Naquele dia, o Senhor ferirá com a sua espada grande, temperada e forte, o monstro Leviatã, serpente sinuosa, o monstro Leviatan, serpente fugidia” (27, 1). Leviatã, o grande monstro marinho, que devora e mata, será finalmente derrotado. A vinha não será mais estragada e abandonada (cap. 5) mas, naquele dia, “cantareis a vinha mais apreciada: «Eu, o Senhor, sou o seu guarda; rego-a a cada momento, e guardo-a dia e noite»” (27, 2). Não sabemos – não o sabe Isaías nem o sabe nenhum profeta – quando chegará ‘aquele dia’; mas, com ele, podemos acreditar que chegará. Sei que não serei eu a ver a aurora daquele dia, sei que aquele ‘tu’ que entoará o ‘cântico da vinha ressuscitada’ será um filho, um neto, um menino do mundo. É esta gratuidade a natureza profunda da esperança. Mas, enquanto o povo estava ‘ainda nas trevas’, ligava estas palavras de Isaías, antecipava a salvação, alcançava já as suas fontes. É este o primeiro milagre da palavra: enquanto, hoje, lemos e dizemos um ao outro as palavras da esperança de amanhã, começa, no exílio, o regresso e começamos a realizar ações diferentes que amanhã transformarão em carne as palavras que, hoje, nos fazem esperar. E é aqui que a impotência dos olhos proféticos se transforma numa misteriosa e real potência do olhar tornado palavra dita e escrita. Os profetas são os guardas do tempo entre o nosso-seu dia e aquele dia que ainda não é. Eles parem vento para permitir que nós geremos filhos.
Isaías continua a revelação do seu segredo e diz-nos que naquele dia chegará também algo de impensável, de impossível: “Os teus mortos reviverão, os seus cadáveres ressuscitarão. Despertai e rejubilai vós que jazeis no sepulcro!” (26, 19). Não há maior impotência que a que experimentamos perante a morte. Todos experimentamos este sofrimento impotente; porém, os profetas sentem-no mais forte e sempre, não apenas quando morrem os seus filhos e os seus amigos.
Talvez então, naquela aurora do ‘primeiro dia depois do sábado’, existisse toda esta dor dos profetas perante os mortos não ressuscitados, a da humanidade frente aos túmulos das suas filhas e dos seus filhos. A fé diz-nos que foi o Pai a ressuscitar o Filho; mas a vida e aquela mesma fé sugerem-nos que foi também a infinita dor impotente das mães e dos pais, através dos milénios, a fazer ressuscitar aquele Filho especial e a fazer-nos esperar na ressurreição dos nossos filhos e dos nossos amigos. Naquela noite estava toda a Lei, todos os profetas e toda a dor impotente da terra. Estava e continua a estar.
Baixa/descarrega o artigo em pdf