Nenhum profeta é para sempre

À escuta da vida / 5 – Chamados a guardar a boa semente, nunca como donos

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 24/07/2016

Spighe di grano rid“Muitas vezes, Deus dando-te, te nega; e negando-te, dá-te”

Ibn Atà, Antologia della mistica arabo-persiana

«No ano em que morreu o rei Ozias, vi o Senhor sentado num trono alto e elevado... Os serafins estavam diante dele, cada um tinha seis asas… Então disse: «Ai de mim, estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros, e vi com os meus olhos o Rei, Senhor do universo!» (6, 1-5).

No ano em que morreu o rei Ozias, vi o Senhor. As vocações acontecem num lugar e num dia precisos, que ficam escritos para sempre no livro da vida e no coração do profeta. “Aqui, o Senhor apareceu a Francisco”, dizem-nos os guias, quando visitamos São Damião. Aqui, há exatamente trinta e um anos, encontrei, pela primeira vez, a tua mãe. Aqui, a 27 de Agosto de 1981, ouvi a voz de Deus, que me pediu tudo, em quem acreditei e dei tudo. Aqui, naquele dia. Nada há de mais concreto no mundo que uma vocação. E é ali que, frequentemente, se volta, quando a voz já não fala, para chamar o espaço e o tempo para testemunhar que o encontro não foi apenas uma ilusão. Para esperar que o lugar, qua ainda existe, faça “ressurgir” o tempo que já não existe. São muitas as peregrinações do espírito, onde se parte para pedir que aquele lugar volte a falar, devolvendo-nos vivo o tempo do primeiro encontro.

As vocações não são nunca apenas, nem principalmente, um assunto de psicologia ou da alma. Falam-nos a terra, o céu, as igrejas, as fábricas, o escritório, o silvado. As palavras da alma são insuficientes para descrever o que aconteceu naquele dia. O homem antigo tinha uma linguagem mais rica que a nossa para descrever a vida e, assim, narrar os acontecimentos do espírito. Sabia que, nos grandes dias da vida – que são pouquíssimos, além do nascimento e da morte – se realiza uma misteriosa aliança entre toda a natureza. Tudo nos fala; tudo é um coro polifónico de vozes diferentes e concordes. Os homens antigos e, entre eles, os da Bíblia, tinham ainda mais recursos. No seu universo não havia apenas a natureza que sentiam muito mais viva que quanto nós conseguimos sentir, no nosso mundo desencantado. A sua terra era habitada por anjos, serafins, querubins e, sobretudo, havia Deus, que era realíssimo na vida das pessoas. Não morava acima do sol; não estava lá, à nossa espera, depois da morte. Era sentido vivo no meio do seu povo; a sua glória enchia “toda a terra” (6, 3). Precisamente porque não se via nem se tocava, era realíssimo e não era um ídolo.

A Bíblia gerou um humanismo capaz de autênticos milagres, civis e morais, porque odiou os ídolos. Hoje, nós não produzimos uma cultura ateia, mas, muito mais banalmente, regredimos para um mundo repleto de ídolos. É necessário ter o sentido de Deus, também para O poder negar, caso contrário é-se não crente de um deus reduzido a ídolo. O ateísmo idolátrico é o grande fenómeno coletivo do nosso tempo, pelo menos tão vasto quanto o é a idolatria de massa. Os ateus do Deus bíblico foram sempre muito poucos, e hoje quase desaparecidos, no nosso canto do mundo, porque já não o conhecendo, também não o podem negar.

Também Isaías conduz-nos ao centro da sua vocação. Como grande poeta que é, usa todas as cores da sua paleta simbólica para nos descrever o seu dia mais importante. Como em todas as vocações bíblicas, também para ele a primeira emoção não é a alegria, mas o temor. Está consciente de estar vivendo uma experiência extraordinária, de ver coisas nunca vistas antes (nem depois). E sente a sua inaptidão para estar naquele encontro, à qual chama, na sua linguagem, “impureza”. Quando se vivem momentos de luz, a alegria acompanha sempre o natural medo: se apenas o medo for o protagonista dos nossos encontros identificativos, não constituiremos família, não entraremos em nenhum convento, não criaremos nenhuma empresa.

Aqui, Isaías está a contar-nos algo de específico: a sua vocação para se tornar profeta. A vocação profética tem características específicas. Não é a única vocação da pessoa nem, geralmente, dura para sempre, nem está sempre ativa. Isaías, antes de receber esta missão específica, já estava dentro duma história de fé. Provavelmente, atuava no ambiente sacerdotal do templo de Jerusalém. Conhecia, vivia e ensinava a fé de Israel. Um dia, porém, no seu caminho existencial, ocorre um acontecimento novo, inesperado, especial: é-lhe dirigido um chamamento específico: tornar-se profeta. Não se nasce profeta; torna-se profeta.

O profeta é um homem, uma mulher que, na normalidade da sua vida, por vezes (nem sempre) já justa e boa, recebe, um dia, um chamamento para realizar uma missão. Não o imaginava, não estava nos seus planos, porque nenhuma vocação profética está nos planos da pessoa que a recebe: se assim fosse, o profeta tornar-se-ia dono da própria missão e as suas palavras seriam apenas fruto da sua pobre voz. A vocação profética não coincide com a vocação profissional, artística, familiar, nem mesmo com a vocação religiosa. Muitos profetas já eram casados, já monges ou religiosas quando, um dia, um preciso e abençoado dia, têm um encontro especial e tornam-se o que ainda não eram, E depois, num outro dia, um abençoado dia, terminam a sua missão, e voltam a casa, como todos. Ninguém é profeta para sempre. Os profetas sabem que a sua profecia é missão, é um dom que está neles e que um dia os deixará e deverão aprender a viver e morrer, como todos. Somente os falsos profetas o são para sempre. Os profetas perdem-se e traem a sua vocação quando não compreendem que chegou a hora de “voltar a casa” ou o compreendem demasiado tarde.

Receber uma vocação profética é, portanto, a surpresa maior que pode acontecer a um vivente debaixo do sol. Uma vocação que está ativa ainda em muitos profetas que, no dia do chamamento, não se encontravam, diferentemente de Isaías, dentro dum templo, que não “viram” ‘YHWH Sabaot’ sentado no trono, nem os serafins. Mas também eles, num encontro decisivo com uma voz que os chamava para dentro, receberam uma missão inesperada, e se sentiram inaptos e impuros. Se os profetas fossem apenas os capazes de chamar “Deus” à voz interlocutora, a terra seria um lugar infinitamente mais pobre, mau, triste, inabitável. Existem muitos homens e mulheres que se enganam e enganam, seguindo vozes erradas a que, por vezes, também chamam Deus: mas há muitos outros que salvam e se salvam seguindo vozes verdadeiras, que não sabem reconhecer, mas às quais sabem responder: “Eis-me aqui; enviai-me”. Também esta foi a resposta de Isaías. Sem o ‘Eis-me aqui’, não começa nenhuma profecia. Toda a vocação é aliança, pacto, núpcias. Não basta a missão assinada; é preciso também o ‘Eis-me aqui’, a resposta livre de quem é chamado. Muitas profecias não se realizam porque os chamados não conseguem pronunciar o ‘Eis-me aqui’ depois do chamamento. Mas a humanidade continua a viver e a esperar, porque muitos profetas ainda sabem responder “Eis-me aqui; enviai-me”, embora intuindo que aquele chamamento não é para a sua felicidade.

Misterioso e desconcertante é o conteúdo da missão profética de Isaías que, graças a uma leitura “especial” de Mateus (13) e João (12), influenciou uma determinada teologia cristã e até mesmo um certo antissemitismo: «O Senhor replicou: “Vai, pois, e diz a esse povo: ‘ouvi, tornai a ouvir, mas não compreendereis. Vede, tornai a ver, mas não percebereis’. Endurece o coração deste povo, ensurdece-lhe os ouvidos, fecha-lhe os olhos. Que os seus olhos não vejam, que os seus ouvidos não ouçam, que o seu coração não entenda, que não se converta e Eu o cure”» (6, 9-10). Eu disse: «Até quando, Senhor?» (6, 11). A honestidade e a verdade do profeta não estão no conteúdo da profecia, mas na fidelidade ao mandato recebido. Raramente os profetas gostam do anúncio que, por vocação, devem levar. Não lhes é pedido para gostarem das palavras que pronunciam. São apenas servidores fiéis de palavras não suas. Mas podem e devem perguntar: “Até quando?” (6, 11). Até quando durará o endurecimento do coração, o sofrimento do meu povo? A vinha já está estragada e desmantelada (cap. 5), os corações e os ouvidos já estão endurecidos, os olhos já estão cegos. Nestes casos, muito comuns, o profeta, com a sua palavra, não converte o povo (isto é, os seus chefes), mas obtém apenas a exasperação dos olhos, dos ouvidos, e a sua perseguição. É este o destino do profeta, sempre, mas sobretudo em tempo de crises graves. Quando a vinha se estragou e se tornou selvagem, o sol e a chuva não fazem mais que tornar mais abundantes os seus maus frutos. Isaías tinha-o intuído, porventura, já naquele primeiro dia. E compreendeu-o quando, anos depois, começou a escrever o relato da sua vocação, primeiro testemunho do insucesso da sua missão. É assim que os profetas morrem; é assim que adubam a terra dos filhos de todos.

O capítulo da vocação de Isaías termina com uma nota de esperança: «Se restar um décimo da população, esse será também cortado. Mas acontecerá como ao terebinto e ao carvalho, que uma vez cortados, deixam um rebento. Esse rebento será uma semente santa» (6, 13). Também o tronco de um carvalho caído pode lançar novo rebento; se ainda está vivo é a sua primeira semente. Os profetas, enquanto anunciam a queda das árvores, são guardiões da semente boa. Os povos e as comunidades continuam a endurecer os seus corações, a não compreender os profetas, a esmagar os pobres. Mas os profetas continuam o seu canto, e a perguntar “até quando?”. Ai deles, ai de nós, se deixassem de cantar.

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