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A economia da pequenez

Profecia é história / 29 – Na derrota, quando uma história acaba, descobrem-se verdade e força de Deus

Luigino Bruni

Original italiano publicado em Avvenire em 22/12/2019

«Porque levaste os meus filhos, porque os mandaste matar ao fio da espada e os deixaste à mercê dos inimigos? E, então, o Deus supremo foi movido por compaixão e disse: “Por ti, Raquel; por ti reconduzirei os filhos de Israel à sua terra».

Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei

Chegámos ao fim do comentário dos Livros dos Reis, com a destruição de Jerusalém e com o exílio. Mas também, no exílio, pode esconder-se uma paradoxal

«No sétimo dia do quinto mês, no décimo nono ano do reinado de Nabucodonosor, rei da Babilónia, Nebuzaradan, chefe da guarda e servo do rei da Babilónia entrou em Jerusalém. Incendiou o templo do Senhor, o palácio real e todas as casas da cidade, começando pelas casas dos mais importantes de Jerusalém. E as tropas que acompanhavam o chefe da guarda, destruíram o muro que cercava Jerusalém. Nebuzaradan, chefe da guarda, levou cativos para Babilónia, os que restavam da população da cidade, os que já se tinham rendido ao rei da Babilónia e o resto da população» (2Rs 25, 8-11). Com o fim da história de Jerusalém – ocupada, destruída, incendiada e com parte do povo deportado em Babilónia – termina também o nosso comentário ao Segundo Livro dos Reis. E conclui-se também a história que tinha começado no Génesis, no caos informe, vivificado e ordenado pelo Espírito. Ali, aparece Adão, o centro da criação que culmina no shabbat, no ato/não-ato com que Eloim, no sétimo dia, “para” (shabbat) e se separa da criação. Um parar e um separar-se que também são o início da história, isto é, do cruzamento de vida e de morte, de virtude e de pecado, de palavras de Deus e palavras de homens e mulheres, de que é composta a Bíblia. O shabbat (não o homem) é o cume da criação e é também o seu destino e o seu eskaton. A criação termina com o shabbat, a dizer-nos que a história terminará quando tudo for shabbat, quando a mesma lei for aplicada a todos os homens e mulheres, sem as distinções dos muitos estatutos dos outros seis dias, e quando a fraternidade humana abraçar a terra e o cosmo. Não encontraremos uma relação possível e capaz de futuro com a criação se não criarmos uma nova cultura do shabbat, sem aprender novamente a “parar”.

Hoje, termina a “história” de Adão, Eva, Caim, Abel, Noé, Abraão, os patriarcas, o Egipto, Moisés e a libertação da escravidão, a terra prometida e, depois, Samuel, Saúl, David e a monarquia até ao último rei de Judá, Joiaquin, com que se fecha o Segundo Livro dos Reis: «No trigésimo sétimo ano do cativeiro de Joiaquin, rei de Judá, no vigésimo sétimo dia do décimo segundo mês, Evil-Merodac, rei da Babilónia, no primeiro ano do seu reinado, fez mercê a Joiaquin, rei de Judá e libertou-o. Falou-lhe benevolamente, e deu-lhe um trono mais elevado que os dos reis que estavam com ele na Babilónia… O seu sustento foi-lhe assegurado pelo rei, durante toda a sua vida, dia após dia» (2Rs 25, 27-30). Estamos trinta e sete anos depois da deportação (em 561) e, aqui, encontramos uma nota de esperança: Joiaquin, o rei considerado por uma parte do povo (e pelo redator) como o legítimo herdeiro de David, é libertado e é-lhe reservado um lugar de relevo na corte do novo rei de Babilónia, o filho de Nabucodonosor – um dado que também encontramos em Jeremias (25, 31-34), confirmado, indiretamente, também por alguns textos encontrados em Babilónia. A história de Israel encerra-se desejando que o exílio não seja a última palavra. Encontramos aqui, talvez, um eco do grande e constante ensinamento do profeta Jeremias: acabou uma história, mas não acabou a história, porque voltará um resto. O redator destes últimos capítulos tremendos vê, na reabilitação do último rei de Judá, um sinal e um anúncio que aquela história, iniciada no grande silêncio da criação ainda poderá continuar. Porque, na tela bíblica que, do Génesis, chega ao último rei davídico, a urdidura que se entrelaça com a trama dos factos históricos, é representada pelas palavras e pelas ações dos profetas. As palavras e as ações dos profetas que encontramos citados nos livros históricos (Elias, Eliseu, Isaías, a profetisa de Hulda, Samuel e os muitos, com nome ou sem nome, que encontrámos nestes meses), mas também as palavras e ações de outros profetas que contribuíram, diretamente, para a interpretação da história que é narrada.

De facto, teríamos uma outra história, um outro sentido dos factos e uma outra salvação sem Ezequiel, Jeremias e o segundo Isaías, e sem outros profetas não-falsos, quase sempre ignorados e sem nome. Estes profetas viram, profetizaram e viveram a queda de Jerusalém e o exílio babilónico, forneceram palavras cruas e essenciais para compreender a enorme tragédia que estava a acontecer debaixo dos seus olhos. O exílio também foi, apesar da dor imensa, um tempo favorável de bênçãos para o povo de Judá, também pela presença de profetas naquela grande shoah (tempestade devastadora). Enquanto estiver ao nosso lado um profeta que partilha o nosso próprio inferno, a partir daquele inferno podemos ver algum rasgo de paraíso. Os oráculos e os gestos de Ezequiel, as palavras inflamadas de Jeremias, os cânticos do servo de YHWH do segundo Isaías, foram o buraco que, do inferno, davam para o céu, donde viam um shalom possível, mesmo no exílio; graças a isso, conseguiram não esquecer o pacto e a promessa e continuaram a sonhar com o seu Deus diferente, sem o confundir com os atraentes deuses babilónicos. Podemos esperar voltar a casa se, no exílio, nunca deixámos de sonhar com ela. Aqueles profetas, maravilhosos e imensos, que, nestes anos de comentários dominicais, pudemos conhecer um pouco, mantiveram vivo o sonho de YHWH e foram capazes de o fazer continuar a “viver”, embora fosse derrotado (toda a fé continua a viver nas nossas crises se nós decidirmos fazê-la viver e ressuscitar, não a esquecendo por causa da demasiada dor da derrota e das desilusões). E, assim, depois do exílio, “YHWH, o Senhor dos exércitos” torna-se “YHWH, o senhor das hostes celestes”: a derrota política foi essencial para compreender que o reino de Deus e a sua oikonomia não são os do poder mas da debilidade, que o lugar onde Deus vive é o “céu” e, por isso, era possível rezar-lhe e tê-lo também ao longo dos rios de Babilónia, mesmo sem aquele templo maravilhoso, agora saqueado, destruído, queimado. A morte da antiga ideia de YHWH gerou, no exílio, uma mais elevada, mais espiritual e universal, que é o grande dom teológico e ético, deixado em herança pelo humanismo e pela história bíblica.

O exílio foi o tempo em que foram escritos alguns dos livros mais belos e importantes da Bíblia. Muitos dos salmos floresceram daquelas lágrimas, ali foram gerados os imensos textos proféticos, escritos e relatos fundadores do Génesis e do Êxodo, todos filhos da dor coletiva maior. Enquanto tudo desmoronava, enquanto a destruição era radical, enquanto a cidade santa de David e o templo de Salomão eram devastados e incendiados, aquela mesma terra ferida produziu algumas obras de arte maiores da literatura de todos os tempos. Naquele exílio, sem templo e sem pátria, aqueles escritores foram capazes de “rever” o templo a renascer da sabedoria de Salomão, belo e puro como o primeiro dia, quando tudo era luminoso e incontaminado. Reviram a fé de Abraão e, enquanto a descreviam, voltaram a acreditar na promessa de uma terra, tornada, agora, um monte de entulho; souberam compreender a descrever com palavras esplêndidas a aliança com YHWH enquanto o pacto e a eleição eram varridos por Nabucodonosor e pelo seu império. Acreditaram, viram e escreveram palavras maravilhosas sobre Deus porque, antes, foram capazes de acreditar na noite da fé: daquela escuridão nasceram a sarça-ardente, a luta de Jacob, o cântico de Miriam e a sua dança com a pandeireta, as grandes palavras do Sinai…; naquela devastação, contaram-nos a libertação da escravidão egípcia enquanto eram conduzidos para a escravidão babilónica e aquela escravidão tornou maravilhosa a narração do mar aberto.

E, se hoje, no tempo da destruição dos nossos templos, quando uma história é, claramente, terminada, existisse o tempo de escrever os livros mais belos? Tudo isto não teria sido possível sem os profetas, que foram novos Moisés porque capazes de indicar uma terra ressuscitada no tempo do seu sábado santo: «Dias virão em que não mais se dirá: ‘Pela vida de YHWH, que tirou do Egipto os filhos de Israel!’ mas sim: ‘Pela vida de YHWH, que fez regressar os filhos de Israel do Norte e de todos os países por onde os tinha dispersado’» (Jeremias 16, 14-15). Uma nova promessa, uma nova aliança, uma nova terra. Só os profetas as sabem fazer. Por vezes, sabemos fazê-las, um pouco, também nós. Quando conseguimos dizer a um amigo palavras sublimes sobre o amor e sobre o casamento, por cima dos escombros da nossa história de amor; ou quando dizemos, sinceramente, palavras belíssimas e verdadeiras sobre a fé e sobre um Deus que há muitos anos já não nos fala, abandonados num exílio que parece nunca mais acabar; ou quando desejamos que haja o paraíso, mesmo se estamos convencidos que não será para nós. Está aqui muito do significado de uma das palavras humano-divinas mais belas: a gratuidade. A Bíblia é muitas coisas ao mesmo tempo, mas é também – e sobretudo – um cântico à gratuidade. Aqui, tudo é graça. A gratuidade é também, um outro nome do shabbat. Porque, se numa terra sem templo, o shabbat se tornou, em Babilónia, o templo do tempo, o exílio foi o shabbat da história, o tempo em que tudo parou, tudo “acabou”. Parou o culto, pararam os sacrifícios, parou a religião, parou a eleição, parou a promessa, também parou Deus. E, depois daquela paragem coletiva e epocal, nada foi como antes. É nos exílios que se aprende o tempo.

E, também desta vez, chegámos ao fim. Também desta vez, como todas as vezes, fica a alegria do caminho, dos encontros, sobretudo das surpresas, e, de cada vez, fica a tristeza por algo que termina, que é curada (em parte) pela própria Bíblia: «É melhor o fim de uma coisa do que o seu princípio» (Qohélet 7, 8). E fica a impressão de ter escrito muitas palavras mas não as que se deveriam escrever – será esta consciência impotente a gratuidade desta profissão? E, mais uma vez, obrigado a Avvenire, ao seu Diretor, Marco Tarquinio, que continua a acreditar, desde um Natal de há seis anos, no trabalho de um economista que se obstina a comentar a Bíblia. E, depois, como sempre, obrigado a vós, leitores, pelas muitas cartas, pela vossa amizade benevolente. Por fim, depois destes seis meses passados em companhia dos Livros dos Reis, fica a «oikonomia da pequenez»: a de David, o mais pequeno dos filhos, escolhido não por méritos mas por graça; a de Belém a mais pequena, entre as cidades de Judá, Permanece a espera, permanece o desejo de sonhar Deus, para não o esquecer ao longo do tempo do exílio.

Bom Natal.

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