Profecia é história / 23 – A mesma palavra bíblica significa «cofre» e arca-sinal da Aliança
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 10/11/2019
Rabbi Schmelke disse: "O pobre dá ao rico mais que o rico dá ao pobre. E mais que o pobre do rico, o rico precisa do pobre"
Martin Buber, Storie e leggende chassidiche.
O dom não se opõe ao contrato e o dinheiro investido, ganho e gasto honestamente, não é menos nobre que as ofertas ao templo. Só juntos, os dons e os contratos nos podem salvar.
A confiança na honestidade das pessoas que nos circundam é um recurso essencial de qualquer economia e sociedade. Quando a presunção de honestidade dos outros – que os juristas chamam boa-fé – inspira as nossas relações, a economia melhora juntamente ao nosso bem-estar. Sem esta premissa de honestidade, são as desconfianças e o pessimismo antropológico a infestar os nossos locais de trabalho e de vida. Nenhuma gestão pode ser subsidiária – isto é, confiar a responsabilidade das escolhas a quem se encontra mais próximo do trabalho a realizar – se não somos capazes de pensar bem dos outros até evidente (e reiterada) prova em contrário. A benevolência, pensar bem dos outros, é a raiz da confiança. Valoriza os trabalhadores, fá-los sentir-se estimados, reforça a confiança nas organizações e, assim, melhora a eficácia e a eficiência da gestão.
Morta Atália, Joás torna-se rei e reina em Jerusalém durante quarenta anos. Para a Bíblia, Joás foi um rei justo e um reformador. É-nos apresentado como um restaurador e um reconstrutor do templo de Salomão: «Joás disse aos sacerdotes: “Todo o dinheiro das coisas consagradas trazido ao templo de IHWH… recebê-lo-ão os sacerdotes e empregá-lo-ão na reparação do templo do Senhor, onde quer que precise de ser reparado”» (2 Rs 12, 5-6). Passam os anos e, apesar das indicações de Joás, o templo não é reparado: «O rei chamou o sacerdote Joiadá e os outros sacerdotes, e disse-lhes: “Porque não fazeis a reparação do templo? Doravante não recebereis mais dinheiro do povo, mas entregá-lo-eis, para se proceder às reparações do templo”» (12, 8). Verificado o fracasso, o rei muda de política, tira dos sacerdotes a gestão dos trabalhos: «Os sacerdotes que guardavam a entrada do templo depositavam ali todo o dinheiro que era levado ao templo do Senhor» (12, 10).
Um bom governo das organizações entende, possivelmente não muito tarde, quando existe um conflito de interesse nos trabalhadores, quando os incentivos individuais não são compatíveis com os objetivos comuns. Estes sacerdotes, por mentalidade e missão (gerir o culto) estavam, objetivamente, numa condição que os levava a não usar bem o dinheiro que recebiam. O rei, que se mostra sábio, não continua a insistir no plano moral, pedindo aos sacerdotes uma conversão; pelo contrário, muda a organização, revê a estrutura objetiva e formal do financiamento e da gestão dos trabalhos do templo. Porque, quando há uma incompatibilidade objetiva entre a missão e o incentivo, continuar a insistir na dimensão moral não é eficaz e apenas cria frustração e conflitos. É preciso mudar imediatamente a estrutura organizativa objetiva e tirar as pessoas dos papéis e encargos não adequados.
Cria-se, assim, no templo um cofre onde serão lançadas as ofertas e a recolha e a administração desses fundos passam para a responsabilidade do rei e do sumo-sacerdote: «O sacerdote Joiadá tomou um cofre, fez-lhe um buraco na tampa e colocou-o junto do altar, à direita da entrada do templo do Senhor» (12, 10). É interessante verificar que quando o escriba do rei e o sumo-sacerdote recolhiam a prata deixada no cofre (porque cheio), «eles fundiam o dinheiro encontrado no templo» (12, 11). Encontramos aqui uma referência à função económica dos templos, na antiguidade. O templo não era apenas o centro do sistema fiscal e de “welfare”; em determinados períodos históricos, no templo também se fundiam os metais para cunhar moedas, desempenhando, portanto, funções de proto-bancos.
Neste trecho, vemos, em primeira mão, o nascimento de uma certa laicização da “fábrica do templo” de Jerusalém. Quanto antes estavaconfiado estritamente aos sacerdotes («era levado aos sacerdotes»), passa, agora, aos que seguem diretamente os trabalhos: o escriba e o sumo-sacerdote «entregavam-no aos encarregados das obras do templo do Senhor» (12, 12). O fracasso da primeira solução de confiança direta – os sacerdotes usavam as ofertas das pessoas para as urgências e para a gestão do culto e dos sacrifícios – produz uma reforma “laica” onde eram os trabalhadores e os técnicos a gerir os trabalhos do templo: uma primeira aplicação do princípio de subsidiariedade económica e administrativa: «os quais pagavam aos carpinteiros e operários que trabalhavam na casa do Senhor, bem como aos pedreiros e aos canteiros; compravam ainda a madeira e as pedras de cantaria necessárias às reparações, e cobriam todas as despesas decorrentes dos trabalhos» (12, 12-13). Assim, evitava-se que as entradas “fiscais” se usassem para fins impróprios: «Porém, não se faziam taças, nem facas, nem bacias, nem trombetas, nem utensílio algum de ouro ou de prata, com o dinheiro trazido do templo do Senhor. Antes, era integralmente dado aos empreiteiros que o empregavam nas reparações do templo do Senhor» (12, 14-15).
É interessante notar a valorização ética que o texto dá a esta mudança: «Não se pediam contas àqueles que recebiam o dinheiro, destinado à paga dos operários, porque eram homens que trabalhavam honestamente» (12, 16). Muito bonita esta honestidade. Delegar e aproximar a gestão do dinheiro de quem o utiliza para o seu fim específico reduziu as custas de monitorização («não se pediam contas…») e, assim, melhorou a eficácia global daquele dinheiro. Mas, antes, o rei tinha mudado algo de importante na estrutura organizativa: a confiança e a honestidade, para nascer e durar, devem ser possíveis e sustentáveis. Muitas confianças desaparecem por falta de reformas organizativas.
É significativo depois que a palavra ’aron, que o texto usa para indicar o cofre colocado no templo para recolher as ofertas, seja a mesma palavra da arca (da Aliança), o artefacto mais precioso de todos, o que continha as tábuas da Lei de Moisés, guardada na zona mais íntima e sagrada do templo, porque símbolo do pacto com o seu Deus diferente. A caixa que contém a prata é colocada dentro do templo. Esta prata, constituída por taças e ofertas (as ofertas também eram livres), não é impura, pode entrar no templo. A Bíblia sabe que há um dinheiro que é “mamona”, não porque, em si mesmo, seja um ídolo (seria demasiado banal), mas porque dá a quem a possui a ilusão de ser deus (toda a idolatria é ilusão): o nosso eu é o ídolo mais tremendo. Este dinheiro não deve entrar nos templos, porque não é amigo de Deus enquanto não é amigo do homem e dos pobres.
Mas também há um outro dinheiro. É certamente o dinheiro dado mas também a prata ganha com honestidade. O dinheiro do dom é amigo do dinheiro de muitos negociantes, porque o contrato não mata necessariamente o dom. Muitas vezes, dom e contrato são companheiros. Quando o samaritano deu ao estalajadeiro as duas moedas para que “cuidasse” do homem meio morto, estava a realizar um ato não menos nobre e espiritual de quem dava dinheiro no templo. E também o dinheiro que damos, hoje, em filantropia não é menos nobre e espiritual que o dinheiro dado por um empresário a um trabalhador num contrato de trabalho justo. As civilizações florescem quando o dom é aliado do contrato e murcham quando quem dá vê com ódio e rivalidade quem trabalha e produz riqueza. A arca da aliança não é a caixa forte de um banco, os seus nomes são diferentes; mas aproximam-se muito se aquele dinheiro nasceu na honestidade e é eticamente administrado e investido. Estão aqui a laicidade da fé e a espiritualidade da economia.
A última parte do reinado de Joás é marcada pela ameaça assíria contra Jerusalém. Joás, novo Salomão, tinha colocado a restauração e o cuidado do templo no centro da sua missão; agora, sente-se obrigado a ter uma atitude que parece negar o sentido de toda a sua vida: «Joás, rei de Judá, tomando os objetos sagrados oferecidos pelos seus antepassados, Josafat, Jorão e Acazias, reis de Judá, e os que ele mesmo tinha oferecido, assim como todo o ouro que se achava nas reservas do templo do Senhor e do palácio real, enviou tudo a Hazael, rei da Síria, o qual desistiu da sua campanha contra Jerusalém» (12, 19).
O templo é esvaziado de todos os tesouros acumulados por ele e pelos seus antecessores. A Bíblia fala-nos de Joás quase exclusivamente em relação ao templo – tinha-o reparado; tinha sido, ali, em criança, coroado rei; ali, tinha sido protegido e educado. A sua vida, toda votada ao templo, termina com o templo esvaziado. Uma outra mensagem sobre a gratuidade e sobre a incompletude da vida, que encontramos em muitas páginas da Bíblia. Passa-se uma vida ao serviço de uma obra que, por vocação e missão, torna-se o sentido da nossa existência. E depois, um dia, aquele tesouro, guardado e acumulado, deve ser mandado embora, e a vida parece perder sentido. Uma grande metáfora da existência humana, onde os tesouros, guardados e acumulados, devem ser restituídos, um pouco de cada vez, para nos tornar livres e pobres; é também metáfora de cada fundador ou responsável de comunidades, que gasta uma primeira, longa, parte da vida a reparar e a acrescentar o tesouro da comunidade, até ao dia em que terá de devolver tudo e viver, finalmente, a castidade.
Mas o relato também nos diz uma outra coisa: aquele tesouro salvou Jerusalém dos sírios que, pagos pelo tesouro, se afastaram. Talvez porque os tesouros que guardamos e cuidamos desempenham verdadeiramente a sua função não quando são acumulados e conservados, mas quando são usados para salvar alguém. Se Joás não tivesse conservado aqueles tesouros, não teria podido salvar a sua cidade no momento determinante do seu reinado. Nós vemos capitais acumulados com grandes sacrifícios desaparecerem em pouco tempo, devorados por advogados, bancos, fornecedores; mas, numa perspetiva diferente e verdadeira, talvez aqueles capitais, enquanto desaparecem, estejam a salvar-nos.
Enquanto se desenrolam as vicissitudes de Joás, rei de Judá, no reino do Norte regressa à cena, pela última vez, o profeta Eliseu: «Eliseu morreu e sepultaram-no» (13, 20). Encontrámo-lo jovem, a guiar doze juntas de bois. Era um jovem rico. Foi chamado por Elias, que lhe pôs pelos ombros o seu manto. Torna-se, primeiro, discípulo de profeta e, depois, ele próprio profeta. Seguiu a sua vocação até ao fim.
Diferentemente de Elias, não é raptado para o céu, mas morre, como nós, como todos. Mas a Bíblia dá-nos uma última cena para nos dizer que os profetas nunca morrem totalmente: «Mas aconteceu que um grupo de pessoas, que ia enterrar um homem, viu esses guerrilheiros e atirou o cadáver ao túmulo de Eliseu. O morto, porém, ao tocar nos ossos de Eliseu, voltou à vida e pôs-se de pé» (13, 21). Os ossos dos profetas sabem fazer ressuscitar. Nem sempre, nem todos, vivemos ao lado de profetas vivos que nos salvam das nossas mortes. A Bíblia, porém, conservou as palavras diferentes e os “ossos” vivos dos profetas. Estão ali, para todos, para nós. Basta apenas tocar-lhe para tornar a viver.
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