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O Nome que se deve aprender

Profecia é história / 6 – A Bíblia diz-nos e volta a dizer-nos que o Deus verdadeiro é o Deus de todos. Assim como Cristo.

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 07/07/2019

«Job/Jó não aceitaria sacrificar supinamente o próprio filho, porque nunca trocaria a religiosidade pela rendição às ordens e às leis»

Ernst Bloch, Ateismo nel cristianesimo

Salomão termina a construção do seu templo e, imediatamente, diz-nos que a morada de Deus não é o templo. É esta castidade religiosa que torna a fé diferente da idolatria.

A tentação de todos os construtores de templos é o desejo de prender Deus na morada que lhe construíram. Porque o risco de qualquer teoria e praxis do sagrado é a transformação da divindade num bem de consumo. A Bíblia recorda-nos que a presença de Deus, nos templos e na terra, é uma presença ausente, na qual se pode realizar o humilde exercício da fé. O sagrado bíblico é um sagrado parcial, o templo é um lugar religioso imperfeito. Esta necessária “castidade religiosa”, que deixa sempre indigentes e desejosos do “Deus do ainda-não”, enquanto se experimenta uma certa presença verdadeira e imperfeita, foi guardada e cultivada ciosamente pela Bíblia; e, um dia, permitiu aos hebreus continuar a sua experiência de fé, mesmo com o templo destruído. A pobreza de ter de estar num templo menos luminoso que os dos outros povos, gerou a riqueza de uma religião liberta do lugar sagrado e, por isso, também possível nos exílios. Só os ídolos são suficientemente pequenos para estarem contidos nos seus santuários. O Deus bíblico é o Altíssimo, porque infinitamente mais alto que qualquer teto de templo que lhe podemos construir.

A dedicação do templo acontece durante uma grande assembleia de todo o Israel. A liturgia começa com o transporte da arca da aliança, tomando-a da tenda onde David a tinha colocado: «O rei Salomão e toda a assembleia de Israel reunida junto dele caminhavam à frente da Arca e iam sacrificando tão grande quantidade de ovelhas e bois que não se podiam contar nem enumerar» (1Rs 8, 5). A arca da aliança (que, como recorda o texto, continha “apenas” as tábuas da Lei de Moisés) é o sacramento do tempo nómada do êxodo e do Sinai, é a ligação entre passado, presente e futuro. O outro fio de ouro que une o novo templo à história antiga de Israel é a presença da nuvem: «Quando os sacerdotes saíram do santuário, a nuvem encheu o templo do Senhor. Deste modo, os sacerdotes não puderam ficar ali para exercerem o seu ministério, por causa da nuvem, já que a glória do Senhor enchia o templo do Senhor» (8, 10-11). De facto, a nuvem já tinha enchido a “tenda da reunião”, quando Moisés completou a sua construção: «Então, a nuvem cobriu a tenda da reunião, e a majestade do Senhor encheu o santuário»; nem sequer «Moisés pôde entrar na tenda da reunião, porque a nuvem pairava sobre ela, e a glória do Senhor enchia o santuário» (Êxodo 40, 34-35).

O templo começa a sua vida pública sob o sinal duma ambivalência radical. Ele é a nova tenda da reunião, a nova morada da Arca e das tábuas da Lei, a casa que guarda as raízes e o pacto. Ao mesmo tempo, a nuvem escura diz que o templo hospeda uma presença que, embora verdadeira, é menos verdadeira que a ausência de Deus, que é senhor do templo, porque não obrigado a habitar ali. A nuvem é o símbolo da presença da “glória de YHWH” e da obscuridade da nossa capacidade de O ver e de O compreender. E, assim, Salomão, naquele que é, porventura, o versículo mais bonito e o sentido profundo de todo este capítulo, pode (e deve) exclamar: «Será que Deus poderia mesmo habitar sobre a terra? Pois se nem os céus nem os céus dos céus te conseguem conter! Quanto menos este templo que eu edifiquei?» (8, 27). E, assim, Salomão, no próprio dia da dedicação do templo, a sua obra-prima religiosa e política, repete várias vezes que a “morada” verdadeira de Deus não é o seu templo maravilhoso. É esta capacidade de contínua auto subversão que torna a Bíblia viva e capaz de nos surpreender sempre.

Uma outra estratégia narrativo-teológica para exprimir a ausência-presença de Deus é a distância entre YHWH e o seu nome. O nome, na Bíblia, diz muitas coisas e todas importantes (a Bíblia também é uma história de nomes dados e trocados, ditos e calados). YHWH, o nome que Deus revela a Moisés, no Sinai, é revelação porque revela e, imediatamente, volta a tapar (re-velar). É um nome/não-nome (“Eu sou o que sou”), que não se deixa manipular nem pronunciar, a não ser no templo, em ocasiões especiais. O nome desenvolve, então, a mesma função da nuvem: esconde e revela, diz e cala, ilumina e escurece. Sempre que um hebreu entrava no templo, devia reviver algo do encontro de Moisés com a sarça: um diálogo com alguém que arde sem se consumir, que fala sem o fazer: «Estejam os teus olhos abertos dia e noite sobre este templo, sobre este lugar do qual disseste: ‘Aqui estará o meu nome’» (8, 29). No templo está o nome de Deus a recordar-nos que o Deus do nome não está ali, porque, se estivesse, não seria Deus. E, se o templo não contém Deus, mas apenas o seu nome, é possível rezar e encontrar YHWH em toda a parte.

A fé bíblica tudo fez para salvaguardar a co-essencialidade da presença e ausência de Deus. Todos os desvios idolátricos que conheceu ao longo da sua longa história foram o resultado da saída da nuvem do templo e da ilusão que o nome de YHWH fosse o próprio YHWH. Quando a nuvem do mistério se afasta e desaparece, conseguimos, finalmente, ver os deuses numa luz claríssima, só porque se tornaram ídolos. O preço de ver sem a nuvem é ver algo de diferente – que nos agrada muito, mas não a Deus. Enquanto conseguirmos permanecer indigentes diante duma nuvem que envolve o mistério e dum nome que se revela e se esconde, podemos esperar, de modo não vão, que, para além da nuvem e do nome, possa estar uma presença viva; pelo contrário, quando, para ver melhor, não aceitamos mais esta pobreza religiosa, quando afugentamos a nuvem e queremos ver Deus face a face; quando, pronunciando o nome de Deus, pensamos conhecê-lo perfeitamente, aí acaba a fé bíblica e começa a idolatria.

A fé vive no espaço que se cria entre a nossa experiência subjetiva sincera de Deus e a realidade de Deus em si: quando este espaço se reduz, com isso se reduz a fé; quando é anulado, é a fé que se anula. A pronúncia do nome de Deus salva-nos enquanto temos viva a consciência que entre aquele nome e Deus há uma nuvem de mistério que não reduz a fé, mas a torna humaníssima e verdadeira. Debaixo do sol, a única experiência de Deus que não podemos fazer é dentro de uma nuvem densa e o nome ao qual Deus responde é um não-nome que consegue chamá-lo e revelá-lo, até que saiba chamá-lo com um nome imperfeito e imparcial e, portanto, verdadeiro. Depois, como se diz no Apocalipse, «hão de trazer gravado nas suas frontes o seu nome» (22, 4); então, o nome de Deus revela-nos o outro enquanto nos olha no rosto – e nós o revelamos a ele.

Dentro deste horizonte de luz e de sombra, de proximidade e de distância, podemos entrar na grande oração de Salomão, no seu templo. É uma oração solene; abraça toda a história da salvação que, desde o Egipto, chega à destruição do templo de Jerusalém e ao exílio e talvez mais longe. É um cântico individual e coletivo; é agradecimento, memória, súplica, com algumas pérolas encastoadas. O seu centro é também a experiência do exílio: «se na terra do seu exílio, entrando em si, se arrependerem dos seus pecados e, cativos, te suplicarem desta maneira: ‘Pecámos, cometemos a iniquidade, procedemos mal’, se eles se voltarem para ti de todo o coração e de toda a sua alma, na terra dos seus inimigos para onde foram levados prisioneiros… ouve do alto dos céus, do alto da tua mansão, as suas orações e súplicas; faz-lhes justiça!» (8,47-49).

É maravilhosa esta oração, dita por Salomão e escrita por escribas deportados em Babilónia, que estavam a aprender uma lição essencial: salvamo-nos no exílio, “reentrando em nós mesmos” e “voltando para ti [Deus]”. São estes os dois primeiros movimentos nos exílios, que são muito mais radicais e determinantes que o “voltar a casa”. Porque sem o “levantar-me-ei e irei ter com meu pai” (Lc 15, 18), nenhum regresso é regresso de salvação – na Bíblia e na vida, não basta voltar a casa, para que terminem os exílios, como nos disse também o Terceiro Isaías.

A experiência do exílio inspira também a outra esplêndida oração de Salomão pelo estrangeiro: «Até o estrangeiro, que não pertence ao teu povo de Israel, se ele vier… rezar a este templo, Tu ouve-o lá do céu, a casa onde habitas, atende a tudo quanto te pedir esse estrangeiro» (8, 41-43). Se a morada de Deus é “o céu” (refrão constante), então todo o homem, debaixo do sol, pode rezar-lhe. Porque este Deus não mais está preso pelos limites nacionais e o seu reino é a terra inteira. São estes trechos, inspirados por uma religiosidade universalista e inclusiva, escritos por um povo que estava a reconstruir, em volta do seu Deus diferente, a sua identidade nacional, mortalmente ferida, que fazem da Bíblia, por seu lado, algo diferente de um livro que narra as vicissitudes históricas e teológicas de um simples povo. Estas frases, estas orações, podiam e deviam não estar nestes livros históricos; pelo contrário, estão, como “flores do mal”, geradas ao longo dos rios da Babilónia. Só um povo, que tinha conhecido a humilhação de se sentir estrangeiro num grande império dos grandes deuses, podia compreender que, se há um Deus verdadeiro e se a terra não é apenas habitada por ídolos, então este deve escutar a oração de qualquer pessoa; porque, se o meu Deus não escuta o estrangeiro, então não tem ouvidos capazes de me escutar também, porque, simplesmente, é um ídolo banal que só sabe agir dentro do seu fingido recinto sagrado. A fé bíblica dos exilados compreende que o seu Deus era diferente porque estava a tornar-se o Deus de todos.

O humanismo bíblico e o cristianismo disseram-nos e repetiram que se há um Deus verdadeiro, tem de ser o Deus de todos. Sabemo-lo, mas aprendemo-lo verdadeiramente durante as guerras, as deportações, os campos de concentração, nos soldados “inimigos” escondidos dentro das nossas casas, quando soubemos ler, nas grandes dores, o “nome de Deus” na fronte de quem batia à nossa porta, de quem chegava às nossas fronteiras e nos nossos portos. Os nossos avós e os nossos pais tinham-no aprendido e, sobre esta lição da carne e do sangue, construíram o reconstruiram a Europa. Nós esquecemo-lo. Mas, talvez no longo exílio humano que estamos a atravessar, poderemos ainda reaprender aquele Nome.

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