O problema do aquecimento global e a consequente mudança do clima são temas que desafiam todo o planeta e cuja solução exige a participação de todos: dos governos e conglomerados empresariais aos cidadãos comuns
por Jônia Quédma
publicado na revista Cidade Nova em Nov/2023 - edição brasileira
Cenas fortes de incêndios florestais, altas temperaturas e outros fenômenos naturais extremos, acompanhados pelo mundo em 2023, a pergunta: por que estão ocorrendo e nos assustando?. O debate internacional sobre mudanças climáticas, que ganhou força com a criação da Convenção- Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima em 1992, deixa muitos questionamentos e exige soluções no âmbito das políticas públicas.
Para falar sobre o tema, entrevistamos a doutora em Direito Patricia Iglecias. Ela é advogada, pesquisadora, superintendente de Gestão Ambiental da Reitoria da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto “O Direito por um Planeta Verde”. Em sua trajetória, a especialista nas áreas cível e ambiental foi secretária do Meio Ambiente de São Paulo e a primeira mulher a presidir a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).
Nessa entrevista, Iglecias apresenta, de forma didática, a realidade do clima e dos impactos na sociedade e afirma que precisamos de um plano de adaptação para lidar com as consequências inevitáveis das mudanças climáticas.
COMEÇANDO PELO BÁSICO, DO QUE SE TRATA EXATAMENTE O AQUECIMENTO GLOBAL?
É o aumento da temperatura média da Terra devido à concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Com a Revolução Industrial, petróleo e carvão tornaram-se fonte de geração de energia para a expansão das atividades econômicas, o que levou à maior emissão de gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera, como dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O). Essas substâncias, encontradas naturalmente na atmosfera, assim como vapor d'água (H2O), funcionam como uma cortina, impedindo que a energia do Sol absorvida pela Terra durante o dia, seja emitida de volta para o espaço. O efeito estufa mantém a temperatura média da superfície terrestre em cerca de 15° C. Mas quando os gases de efeito estufa ficam em excesso na atmosfera, mais calor é aprisionado. Assim, o aquecimento global resulta do desequilíbrio entre a emissão de gases de efeito estufa e a capacidade que o planeta tem de absorver essas substâncias. O descompasso entre a quantidade de gases emitida e a absorção de carbono pelo planeta leva à maior concentração de gases de efeito estufa na atmosfera (que podem ficar lá por décadas) e ao aumento da temperatura média global e, por sua vez, ao aquecimento global.
QUANDO ESSE AQUECIMENTO COMEÇOU A AUMENTAR?
Depois da industrialização da sociedade, fábricas e empresas passaram a emitir gases de efeito estufa de forma massiva e desregrada. Também a demanda por recursos naturais para atender à população crescente e os processos produtivos sobrecarregaram o planeta. As atividades humanas foram responsáveis por aumentar a temperatura média global entre 0,8 ºC e 1,2 ºC, conclusão respaldada pelo Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC). O IPCC é o órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) que avalia as pesquisas científicas sobre mudanças climáticas, suas implicações e possíveis riscos futuros, bem como propõe opções de adaptação e mitigação.
QUAL É A RELAÇÃO DO AQUECIMENTO GLOBAL COM AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS?
Esse aumento de temperatura contribui para as mudanças climáticas. Mudança climática refere-se a transformações de longo prazo nos padrões de temperatura e clima. Essas alterações podem ser naturais, mas, desde o século 18, as atividades humanas têm sido a principal causa das mudanças climáticas, principalmente pela queima de combustíveis fósseis (como carvão, petróleo e gás), que produzem gases que retêm o calor.
ESTE ANO JÁ VIMOS OS MAIS EXTREMOS EFEITOS NATURAIS DE CALOR, INCÊNDIOS, ENCHENTES ETC. QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS RESPONSÁVEIS POR ESSES FENÔMENOS?
Vou elencar:
1. Geração de energia (eletricidade e calor): produzida pela queima de carvão, petróleo ou gás.
2. Fabricação de produtos: os modos de produção, a mineração, a construção civil e outros processos industriais também liberam gases. A indústria de manufatura é uma das maiores contribuintes para as emissões de gases do efeito estufa no mundo.
3. Desmatamento florestal: o desmatamento de florestas para criar fazendas ou pastos, ou por outros motivos, é responsável por cerca de um quarto das emissões globais de gases do efeito estufa.
4. Uso de transporte: a maioria dos veículos funcionam com combustíveis fósseis. O transporte é responsável por quase um quarto das emissões globais de dióxido de carbono relacionadas à energia.
5. Produção de alimentos: gera emissões por causa do desmatamento e da limpeza de terras para agricultura e pastagem para o consumo por gado bovino e ovino, para a produção agrícola, além do uso de energia para o funcionamento de equipamentos agrícolas e de pesca.
6. Energia nos edifícios: no mundo todo, prédios residenciais e comerciais consomem mais da metade de toda a eletricidade e emitem muitos gases de efeito estufa. A crescente demanda de energia, o maior uso de aparelhos de arcondicionado e o aumento do consumo de eletricidade para iluminação, eletrodomésticos e dispositivos conectados têm aumentado nas emissões de CO2 nos últimos anos.
7. Excesso de consumo: o uso de energia residencial, a forma de locomoção das pessoas, o que elas comem e quanto lixo produzem contribuem para as emissões de gases de efeito estufa. E, claro, soma-se a isso o consumo de produtos, como roupas, eletrônicos e plásticos. Uma grande parte da emissões globais está vinculada a residências particulares. Nossos estilos de vida têm profundo impacto no nosso planeta. Os mais ricos são mais responsáveis: a parcela 1% mais rica da população global combinada responde por mais emissões de gases do efeito estufa do que os 50% mais pobres.
QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS CONSEQUÊNCIAS DISSO PARA A VIDA NA TERRA?
Aqui cabe uma nova lista:
1. Temperaturas mais altas: desde os anos 1980, cada década tem sido mais quente do que a anterior. Quase todas as áreas têm tido mais dias quentes e ondas de calor.
2. Tempestades mais severas: conforme as temperaturas aumentam, mais umidade aumenta a evaporação, intensificando chuvas e causando inundações extremas em muitas regiões. Essas tempestades destroem casas e comunidades, causando mortes e enormes perdas econômicas.
3. Aumento da seca: o aquecimento global agrava os períodos de estiagem em regiões onde a falta de água já é comum e leva a um risco maior de secas agrícolas, afetando plantações, e de secas ecológicas.
4. Oceanos cada vez mais quentes: o aquecimento aumentou muito nas duas últimas décadas, em todas as profundidades. O derretimento de placas de gelo também provoca o aumento do nível do mar, ameaçando comunidades litorâneas e insulares.
5. Perda de espécies: as espécies na terra e no oceano estão em risco. O mundo tem perdido mil vezes mais espécies do que em qualquer outro momento na história. Um milhão delas está em risco de extinção nas próximas décadas.
6. Falta de alimentos: as mudanças no clima promovem o crescimento global da fome e da subnutrição.
QUAIS SÃO AS IMPLICAÇÕES PARA A SAÚDE?
As mudanças climáticas são a maior ameaça à saúde que a humanidade enfrenta. Os impactos já estão prejudicando a saúde, com poluição do ar, doenças, pressões sobre a saúde mental e aumento da fome e subnutrição, pois as pessoas não conseguem cultivar ou encontrar alimentos suficientes. A cada ano, fatores ambientais tiram a vida de cerca de 13 milhões de pessoas. A mudança dos padrões climáticos está expandindo o número de doenças, e os eventos climáticos extremos aumentam as mortes e dificultam a manutenção dos sistemas de saúde.
COMO AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS AFETAM AS POPULAÇÕES MAIS VULNERÁVEIS?
Causando mais pobreza e deslocamento. As mudanças climáticas aumentam os fatores que levam as pessoas à pobreza e as mantêm nessa situação. Inundações podem assolar favelas urbanas, destruindo casas e meios de subsistência. O calor dificulta o trabalho ao ar livre. A escassez de água pode afetar a agricultura. Na última década (2010–2019), eventos do clima provocaram o deslocamento estimado de, em média, 23,1 milhões de pessoas por ano, deixando muitos mais vulneráveis à pobreza. A maioria dos refugiados vem de países que estão fragilizados e menos preparados para se adaptar aos impactos das mudanças climáticas. Na prática, é preciso fortalecer sistemas de alerta precoce, melhorar infraestrutura resistente ao clima e promover ações de adaptação em comunidades vulneráveis.
O QUE O BRASIL TEM FEITO, EFETIVAMENTE, PARA CONTROLAR/MITIGAR AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS?
O Brasil é, atualmente, o sexto maior emissor de gases do efeito estufa. As principais fontes de emissão de dióxido de carbono (CO2) no Brasil são o desmatamento e as queimadas. Em segundo lugar, o setor agropecuário, seguido pelo setor energético devido à queima de combustíveis fósseis por veículos. Algumas ações do governo brasileiro são adotadas para diminuir a emissão de gás carbônico: políticas governamentais mais rígidas para o controle da emissão de gás carbônico; implantação de energia renovável e incentivos às alternativas de transporte, aos veículos menos poluentes, ao reflorestamento, à redução do desmatamento e da queima das florestas, à agricultura sustentável e à diminuição do uso de agrotóxicos.
Os avanços incluem investimentos em energias renováveis, pagamento por serviços ecossistêmicos, mercado voluntário de crédito de carbono, emissão de títulos verdes, aumento dos investimentos na preservação dos biomas e no combate ao desmatamento e demarcação de novas terras indígenas.
SABEMOS QUE GRANDES COMPANHIAS E OS GOVERNOS SÃO OS PRINCIPAIS RESPONSÁVEIS POR DETER O AQUECIMENTO GLOBAL. MAS COMO O CIDADÃO COMUM PODE CONTRIBUIR PARA SUPERAR ESSE PROBLEMA?
A sociedade como um todo também pode auxiliar para diminuir a emissão de gás carbônico. Pode ser por meio da alimentação, dando preferência a alimentos orgânicos e diminuindo o consumo de carne. Pode optar por meios de transporte coletivo, assim como escolher veículos que emitem menos CO2. Diminuir a emissão de gás carbônico é um compromisso mundial e deve ser feito de forma rápida para diminuir os impactos do aquecimento global. Para isso, são necessárias ações do governo dos países e um crescente incentivo para que a população também colabore.
Patricia Iglecias: Pesquisadora e presidente do Instituto “O Direito por um Planeta Verde”