O necessário é demasiado pouco

À escuta da vida / 25 – Aprender a viver o tempo do amadurecimento da semente

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/12/2016

pescador“Procuro a palavra. / A nossa língua é impotente, /os seus sons repentinos – pobres. / Procuro com o esforço da mente / procuro esta palavra – mas não consigo encontra-la. / Não consigo”

Wislawa Szymborska, "Cerco la parola"   [Procuro a palavra]

Escondido no coração da humanidade está sempre o desejo profundo de uma terra da gratuidade. Uma terra onde todo o homem, toda a mulher, todo o pobre tenha pão, água, leite, mel, sem que o acesso a estes bens fundamentais de vida seja medido pela posse do dinheiro. Porque sabemos, sentimos, que mais profundo que a lei do dar e do ter moeda e da finança, há um laço de fraternidade mais verdadeiro do que as desigualdades económicas e sociais, que nos chama e espera que o descubramos e reconheçamos.

Não a encontrámos ainda esta terra da gratuidade. Parámos demasiado cedo, contentando-nos com sociedades onde o acesso às coisas é regulado pela caixa registadora, por mercados excluídos a quem não tem nada para oferecer, ou que tem bens diferentes que os mercadores não vêm ou não apreciam. Porém, enquanto a moeda se torna cada vez mais a medida de tudo e de todos, os profetas continuam a manter viva a promessa de uma terra diferente, sempre distante, mas sempre viva enquanto alguém for capaz de não deixar de desejar o impossível, de não apagar o sonho de uma sociedade do gratuito. Continuam a banhar e fecundar a terra com as suas palavras grandes, a transformá-la, a redimi-la, em cada dia: “Todos vós que tendes sede, vinde beber desta água. Mesmo os que não tendes dinheiro, vinde, comprai trigo para comer sem pagar nada. Levai vinho e leite, que é de graça” (Isaías 55, 1).

Depois de o profeta ter entoado os cânticos do ‘servo de YHWH’, tornando-se vítima esmagada e rejeitada, que, como manso cordeiro, vive o seu sofrimento como ‘parto’ de um povo novo, recriado inocente pela inocência da vítima, deparamo-nos com esta profecia de gratuidade. Apanha-nos de surpresa, continua ainda a admirar-nos, a comover-nos com a sua beleza – os adjetivos são muitos, são precisos muitos para podê-la descrever, ao menos um pouco: é verdadeira, forte, indignada, consoladora, e é bela. Talvez só depois de ter visto o mundo na perspetiva dos últimos, dos oprimidos e humilhados, e também depois de ter saboreado o lado cru da vida, depois das subidas aos Monte Moriá e aos Gólgota, é possível compreender verdadeiramente alguma coisa do valor e do preço da gratuidade e da sua beleza típica. Só quem verdadeiramente tem sede e fome pode compreender o valor da festa, do supérfluo: do ‘vinho e do leite’. Os profetas, mestres de verdadeira humanidade, sabem bem que muitas pessoas morrem por falta de pão e de água; mas também sabem que há outros que morrem por falta de alegria e de festa: porque ‘já não têm vinho’. Têm olhos para ver também a fome e a sede de beleza, de gratuidade, de festa; vêm as faltas dos bens primários e a falta de excessos, a fome e a sede do ‘mais’. Porque, diferentemente dos outros seres vivos, quando a nós, homens e mulheres, falta o ‘mais’, não nos é sequer suficiente o necessário, e deixamo-nos morrer quando, na nossa mesa, falta o ‘vinho’ da amizade ou o ‘leite’ da estima. Apenas com pão e água sobrevive-se durante um pouco, mas não se consegue viver longamente. À gratuidade faltaria uma nota essencial se se limitasse ao dom do que é necessário: a gratuidade sem excesso não seria bastante gratuita. O necessário é muito pouco. Como quando combinamos com um amigo querido, ou com a nossa mulher, que, neste ano de crise económica, no Natal, não haveria presentes, mas apenas um postalzinho, mas, depois, se na noite das felicitações, além do postalzinho combinado, não há, pelo menos, uma flor, um ‘mais’, não ficamos verdadeiramente felizes. É o ‘mais’ que humaniza as nossas relações necessárias, que gera a alegria, o sacramento de todo o excesso, a flor da gratuidade.

A profecia da gratuidade do segundo Isaías não acaba aqui, e continua até à conclusão do seu cântico. As grandes palavras sobre o Emanuel, sobre o ‘resto’ fiel, sobre as espadas transformadas em arados, os imensos cânticos do servo, são palavras que, há milénios, estão fecundando a terra; tornaram-na diferente, melhor, certamente mais fértil, mais bela. Sem a profecia e sem o livro de Isaías não teríamos podido compreender e descrever a vida, a morte e a ressurreição de Cristo, teríamos palavras mais pobres para descrever as nossas pazes depois das guerras, os poetas e os escritores teriam palavras menos expressivas para cantar a nossa esperança e as nossas dores. Teríamos igrejas e catedrais menos bonitas, menos ricas e menos coloridas, sinfonias e óperas com notas menos profundas. Teríamos menos substantivos e verbos para recordar Auschwitz, para compreender as dores e a angústia das vítimas e, talvez, procurar salvá-las, para nos dizer e descrever os nossos maiores sofrimentos e alegrias. Bastaria o dom destas palavras para sermos eternamente gratos aos profetas bíblicos, a todos, também ao livro de Isaías. Mas também as palavras sobre a gratuidade universal do pão e do leite, palavras mais humildes e mais simples dos grandes cânticos e hinos (da gratuidade é possível falar bem apenas em voz baixa, sussurrando-a, porque é ela própria que se descreve enquanto a vivemos), irrigaram e fecundaram a terra, mudaram o tempo e a história: “Assim como a chuva e a neve descem do céu, e não voltam mais para lá, senão depois de empapar a terra, de a fecundar e fazer germinar, para que dê semente ao semeador e pão para comer, o mesmo sucede à palavra que sai da minha boca: não voltará para mim vazia, sem ter realizado a minha vontade e sem cumprir a sua missão” (55, 10-11).

A palavra é eficaz, dá fruto sobretudo quando penetra na terra e desaparece no solo. É como a boa chuva e a neve, enquanto parecem desaparecer da superfície, é aí que começam a atuar verdadeiramente, a fazer amadurecer as sementes no subsolo. Se a palavra age enquanto penetra no terreno e desaparece, não a devemos procurar na superfície das nossas cidades, porque tem de ser absorvida para poder agir em profundidade.

Se levarmos a sério esta imagem do segundo Isaías, então, não podemos ler a história da Europa, do Ocidente, do cristianismo, como um processo de decadência, um progressivo afastamento de um Éden primitivo a longínquo – embora muitos o façam, cada um com o seu próprio Éden. Mas temos de ler esta mesma história como um lento florescimento da semente da palavra que não se tornou vazia. Esta é uma leitura mais verdadeira da história, mais bíblica e profética. A gratuidade de alimento e de água que o antigo Israel praticava enquanto o segundo Isaías dizia aquelas palavras, eram as consentidas pelas instituições do dízimo, da colheita, do templo. Os leprosos eram expulsos e marginalizados fora da cidade, e as viúvas, os órfãos e a maior parte do povo vivia em condições permanentes de miséria e de privação. Depois, os cristãos continuaram a ler e a proclamar as mesmas palavras, tomadas e ampliadas pelo ensino evangélico e, ao longo de muitos séculos, aquela palavra começou a fazer desbrochar as sementes dos Montepios dos franciscanos, depois das escolas, dos hospitais, das muitas obras sociais dos movimentos carismáticos modernos. E hoje, o Estado social, as pensões, os salários mínimos, os muitos movimentos que, enquanto nós dormimos, andam pelas ruas a libertar escravos, nas estações, não para seguir viagem, mas para estar ao lado, alimentar, aquecer quem não consegue partir para novas viagens. E, depois, a democracia, os direitos para muitos, às vezes para todos, a liberdade, a igualdade, por vezes a fraternidade, floridas graças à água e à neve da palavra bíblica – e outras águas e outras neves de outras profecias religiosas e civis. Boas sementes, amadurecidas e crescidas no nosso campo, juntamente com a cizânia, mas onde o trigo existe e é mais abundante, mais forte – a água e a neve regam e alimentam todas as sementes. Esta palavra, caída originariamente e em abundância sobre Jerusalém, sobre a Palestina, continua a irrigar a nossa vida mesmo se já a não vemos, mesmo se hoje já não conseguimos reconhecer a primeira água nos frutos que comemos e ser-lhe gratos. Está também nisto o seu desaparecer, a gratuidade necessária da palavra.

Esta lógica da palavra que age desaparecendo também nos faz compreender o caminho moral e espiritual da pessoa individual que a acolhe. A palavra que escutámos em jovens, a que caiu como água e neve, ao longo dos melhores anos da nossa vida, deve desaparecer se queremos que produza fruto, porque deve ser absorvida pela nossa carne e pelo nosso coração. Não é recolhida em telas de plástico ou nas cisternas, não é guardada com medo que se perca, porque é quando já a não vemos que inicia a sua obra. Para fazer germinar as sementes, deve penetrar na medula da alma e da inteligência e, assim, já a não conseguimos ver diante de nós. É quando desaparece que a palavra começa a desenvolver a função para que ‘foi enviada’. E, então, quando a neve se derrete e a paisagem perde a sua pureza e o seu silêncio, quando já não encontramos as palavras do primeiro amor e a terra parece árida, quando já não sentimos a frescura da água que banha as folhas nem o bom calor da neve que cobre a nossa terra, é precisamente ali que a palavra está a operar verdadeiramente, para desenvolver a sua função mais preciosa. Há um primeiro tempo da palavra quando nos banha, a vemos, nos inunda, cobre toda a nossa paisagem: está à frente, acima, ao lado de nós. Mas, se queremos que cheguem os frutos, esta primeira fase tem de acabar. O que nos aparece como ausência e nostalgia é apenas o tempo do amadurecimento da semente. A bênção maior da palavra é a parte que não se vê, porque, ao desaparecer, alimenta e vivifica-nos a nós e à terra. A verdade da palavra mede-se pelas sementes e pelos frutos que faz desabrochar no nosso campo, quando parece já não existir.

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